Numa vila do
interior minhoto, vivia uma velha que ninguém sabia de onde é que tinha vindo.
Não nascera na terra, não tinha parentes, e sobre a sua idade ninguém sabia,
nem ela própria. Seu nome? Dizia que se chamava Maria. Maria quê? Com um olhar
a perder-se no infinito,
repetia: Maria!
Havia gente
que simpatizava com ela, outras achavam que era uma bruxa, e desprezavam-na por
nojo ou medo. Havia quem lhe pedisse conselhos dos mais variados: como tirar as
nódoas de tinta de uma camisa e nódoas de sangue de uma blusa ou como se deviam
tratar tais flores ou frutas, inclusive perguntavam-lhe como seria o tempo para
os tempos próximos. A tudo isto respondia com precisão. Questionavam-lhe como é
que sabia tanta coisa, e ela respondia que era dos anos que transportava às
costas.
No seu corpo
corroído pela idade, tinha umas mãos que mentiam a sua velhice. Eram umas mãos
com poucas rugas, uns belos dedos, pele suave como seda. Era uma sensação
maravilhosa tocar aquelas mãos. Tinham poderes curativos, diziam, mas ninguém
nem os próprios curados confirmavam, talvez por receio. Foi o caso do rapaz que
tinha os vulgarmente chamados “cravos” e que desapareceram de um dia para o
outro quando ela passou as suas mãos pelas dele; ou da rapariguinha, já
namoradeira, que tinha um vermelhão na pele que não havia remédio ou mezinha
que lho tirasse. Ela acariciou-lhe a cara, os braços, o pescoço e o colo, e,
dois dias depois, a jovem foi-lhe agradecer. Estava limpa de todo o mal.
Um casal
também a procurou, pois a sua filha Carla de 9 anos tinha desaparecido. Mas a
velha remeteu-se ao silêncio. Os pais não ousaram insistir, principalmente o
pai, que estava com um ar comprometido e que arrancou à força a mulher de junto
da velha.
Aparecia
todas as manhãs, cedinho, empurrando uma carreta. Nos tempos frios vendia
castanhas assadas e, nos de calor, flores de uma beleza sem par, ou fruta, das
variedades menos conhecidas: dióspiros, romãs, kiwis, figos, maracujás, de uma qualidade insuperável. Tinha,
sempre, algo para comercializar.
Os colegas
vendedores, curiosos pela qualidade dos seus produtos, tentavam saber onde ela
os adquiria. Na resposta, entre um belo sorriso que os anos não lho tiraram,
dizia-lhes que era o Anjo. Pensaram os colegas que seria um lavrador lá
da terra, o António Anjo, mas, quando lhe perguntaram, ele respondeu que nunca
lhe vendera coisa alguma.
Comia a sua
sopinha, todos os dias, na tasca do Sr. Manuel e, no final do dia, pegava na
carreta e no banquinho onde se sentava, num recanto entre a cabina do posto de
transformação da electricidade e uma casa desabitada, mesmo no centro da vila,
onde semanalmente se fazia a feira, e dirigia-se por um caminho estreito
enquadrado por sebes em direcção ao rio.
O rio não era
largo, mas era profundo. Tinha uma tosca ponte de madeira. A velha, todos os dias,
uma vez para cá, outra para lá, atravessava-a. Do outro lado, o terreno era
diferente, perdia toda a geometria, só pedregulhos e mato. Diziam que existiam
cavernas e covas onde feras disputavam o lugar.
Era um sítio
que metia respeito, mesmo medo. Ninguém, a não ser a velha, se arrojava a
atravessar o rio. Diziam também que andavam por lá almas penadas e espíritos
malignos.
O tempo
escorria, e este ritual da velha era uma constante no dia-a-dia. A gente da
terra gostaria de saber onde era a alcova da velha, mas ninguém tinha coragem
ou ousadia de atravessar a ponte.
Até que um
dia a velha escafedeu-se.
O Sr. Manuel,
o tasqueiro, que se afeiçoara à velha, ousou procurá-la. Foi buscar coragem aos
anos que era considerado um homem valente e, armado de um cajado, atravessou a
ponte. Um estreito carreiro desmatado, marcado pelo rodado da carreta, subia em
direcção a uns gigantescos penedos. Disfarçado por um emaranhado de
trepadeiras, vislumbrou um buraco que era a entrada de uma caverna. Manuel
entrou. O local era de médias dimensões. Era quente e limpo e o chão atapetado
com flores silvestres, muito pequeninas. As paredes estavam secas e brilhantes,
preenchidas de variedades de quartzo, leitoso e róseo. Era deslumbrante. A um
canto encontrava-se um catre com roupa. Mais ao fundo pequenas volutas de fumo
espiralavam restos de uma fogueira junto a uns utensílios de cozinha.
Ouviu uns
sons sumidos no fundo da caverna. Aproximou-se. Em pequenas caixas de frutas,
em caixotes de madeira ou mesmo em recipientes de plástico, forrados por macias
folhas, estavam animais, principalmente gatos e cães, e até um raposinho, que
estavam a ser tratados de ferimentos ou de doenças. Socorrendo-se de plantas
medicinais que a velha era conhecedora, os animais estavam quase totalmente
recuperados das suas maleitas. Era um autêntico hospital veterinário, na sua
simplicidade, de que as coisas simples são feitas. A velha nutria um verdadeiro
amor por estas criaturas. Na sua incredulidade, Manuel nem se apercebeu que
alguém se aproximou dele. A velha colocou a mão sobre o seu ombro. Nada
disseram, nem era preciso. A ausência estava justificada, aqueles seres vivos estavam
a necessitar dos seus cuidados. De súbito ouviu a voz de uma criança. Atónito,
viu que era a Carla que desaparecera da aldeia fazia tempo. A velha contou-lhe
o que se passou com a menina. O pai abusava dela, e esta teve de fugir de casa.
Pediu ao Manuel que a levasse à casa dos avós e que participasse o
acontecimento à Guarda. Disse-lhe ainda que um dia regressaria e que havia mais
animais e gente a precisar dos seus serviços.
A velha
afastou-se de Manuel. Deu-se uma epifania. A caverna inundou-se de uma luz
brilhante. Uma aura branca luminescente envolveu a velha. O brilho aumentou até
que preencheu a totalidade do seu corpo. Esta deixou de ter forma humana e
transformou-se num objecto tridimensional na forma de uma imagem. A imagem
levitou e desapareceu por entre uma concavidade da gruta.
Com decisão,
Manuel pegou na criança ao colo e saiu da gruta. Adentrou-se pelo mato na
procura do caminho que o levasse ao rio. Atravessou a ponte e com o auxílio de
uma pesada vara ferro, que o destino ali lhe colocara, desfez a ponte. O rio
que ia caudaloso fez o resto do serviço e arrastou a ponte feita em bocados.
Tinha a plena convicção de que a
velha não queria que aquela gruta fosse alvo de invasão ou se transformasse num
lugar de culto.
Manuel foi
fazer o que a velha lhe pediu: entregar a criança aos avós e de seguida foi à
Guarda.
Taciturno, regressou
à tasca. Ninguém lhe arrancou qualquer palavra.
Estranharam
que a ponte tivesse deixado de existir. A falta da velha foi comentada e por
alguns sentida. O tempo tudo esquece.
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