Estávamos na segunda metade de 50.
Aquela passividade de santo em que se encontrava, ficando
à espera que o inesperado acontecesse, cansou-o. E sendo pouco o muito que
possuía, pouco menos de pobre ficava se partisse apenas com meia dúzia de
contos de réis nas algibeiras. Mandou fazer um bolso falso na parte de dentro
do casaco, meteu lá algumas notas, fechou-o cosendo-o e estava tudo a
postos.
Fartou-se da pobreza, da rotina e do facto de todos
comandarem a sua vida exceto ele. Resolveu então mondar os seus “pecados” e
partir. E partiu!
Era madrugada. O galo ainda não tinha cantado e o relógio
na torre da igreja ainda não existia. Quando a manhã desobscurecia, ele saiu da
cama com mil cuidados para não acordar quem dormia. Preparou-se (evitando olhar
para a mulher que com o coração nas mãos o seguia por todo o lado), sentou-se
dois minutos nas escaleiras a olhar para dentro, rezou um pai-nosso, apertou o
lábio inferior com os incisivos superiores durante alguns segundos e
despediu-se da mulher com beijos de lei. Saiu pé ante pé e “fez-se ao
desconhecido”.
Saiu com os pensamentos enovelados, chegando mesmo a ter
medo da infelicidade que o acompanhava e atormentava. Cerrou os punhos, encheu
o peito de coragem e esvaziou o medo através de todos os poros. O lusco-fusco
matinal ofuscava mais do que esclarecia e obrigava-o a um semicerrar de olhos
como se, com eles mais pequenos, visse mais e melhor.
Escolheu uma hora em que aldeia estava mergulhada no sono
para pôr os pés ao caminho que o havia de levar ao primeiro local de embarque.
Na última parte do percurso e quando sentia já as pernas fraquejar dizia para
consigo: «Há que teres coragem!» Era mais uma maneira de se confortar a si
próprio e não desistir. Caminhava firme e decidido e, passadas duas horas bem
contadas, estavam palmilhadas duas léguas bem medidas. Encontrava-se na estação
de comboios mais próxima — Pocinho —, donde partiria para terras de França.
Chegou alagado em suor. Durante a caminhada parece que ia
na pegada de alguém, mas não! Antes pelo contrário: ele ia a fugir de si para
tentar encontrar-se consigo, longe de tudo e de todos. Iniciar tudo de novo.
Partir do nada de encontro ao tudo! Julgava ele...
A árvore das patacas estava longe. Mesmo muito longe…
Esperou algumas horas para partir e pouco depois da hora
marcada partiu mesmo. Antes mesmo de se ouvir o silvar do “trem” já ele estava
farto da viagem que ainda não tinha acontecido. À medida que o comboio palmilhava
distâncias pensava: “Tão rico sou sem dez como sem vinte, mas desde que seja eu
a decidir o meu presente, tanto se me faz que os rios corram para jusante como
para montante.» Quando deu por ela estava na fronteira – Barca d’Alva. Esteve
parado algum tempo. Sentou-se por ali, abriu a taleiga, tirou de lá de dentro um
cibo de queijo, um bocado de borneiro, a cabaça do vinho e aliviou a fome. Este
foi o seu jantar-almoço. Depois de cumpridos os cerimoniais legais disse adeus ao seu país. Já em terras de
Espanha, e com o aproximar da noite, o cansaço apoderou-se dele e embora
estivesse que nem podia (sono, fome, sede e morto de tristeza, mas livre para
poder pensar os seus pensamentos), adormeceu embalado pelo «solavanquear» do
comboio.
Quando acordou era noite cerrada. Quem não lhe saía da
ideia eram os dois filhos de tenra idade que deixara às custas da mulher. Mas
um dia havia de voltar e levá-los com ele! Jurou a si mesmo que a primeira
oportunidade que tivesse ia agarrá-la com unhas e dentes e juntar toda a sua
família. Rezou, massacrou-se com projetos futuros e, cansado, voltou a
adormecer.
Amanheceu. À medida que o “Sol subia no céu” e com o
afastar do comboio, mais o cansaço de permeio, ele via o longe a recuar. Ou
melhor, pensava que via!
A viagem tornou-se longa e fastidiosa. Nunca mais via a
“luz ao fundo do túnel”!
Finalmente chegou a França e, depois de alguns
transtornos, a Marselha. Saiu do comboio e sentia que tinha as pernas
inebriadas. Mas, pior do que isso, a língua recusava-se a falar e os ouvidos a
entender o que ouviam. Respirou fundo e apesar de toda aquela canseira
sentiu-se descansado. Sentou-se no primeiro banco e respirou longamente. Sentiu
o ar entrar e a liberdade sair pela primeira vez na vida. Amanhã ia ter tempo
para abraçar uma vida nova. Chegou carregado com toda a força que tinha nos braços
e uma vontade enorme de os libertar. As barreiras, com a ajuda de um parente
afastado que havia de chegar a qualquer momento, levantar-se-iam
certamente.
Não conhecia muito do mundo, apenas sabia que o seu país
não servia para ele. Sabia ainda que grandes fortunas são, geralmente, grandes
pecados! A maior parte das vezes amassadas em suor dos outros. Naquele país e
naqueles tempos, os tempos eram tempos em que, para ganhar uma ninharia, um
homem honrado tinha de cuspir muito às mãos. E as dele, de tanto lhes cuspir,
encontravam-se demasiado calejadas para continuar.
Eu e alguns de vós que estais a ler este conto de vida
somos frutos desta geração que, para estarmos aqui, sãos e escorreitos, “comeu
o pão que o diabo amassou”. Esses eram tempos e um país das meias solas. Hoje
são, e é, o das solas rotas. E o pão que comemos (sendo outro) sabe ao
mesmo.
2 comentários:
Este conto é um retorno ao passado, um retrato de Portugal na década de 50.
Delmano Graça apresenta o retrato de um homem honesto e sincero que tem esperança, fé … e procura uma vida melhor para si e parra os seus.
A vida só se consegue manter na crença de um futuro melhor…
Fica a mensagem do coautor: Hoje, tal como ontem, teremos que manter viva a esperança…
A propósito (no meu entender) lembrei-me de um livro que li: "Terra sonâmbula", de Mia Couto…
Transcrevo um pequeno excerto que considero oportuno:
“O que faz anda a estrada?
É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.”
Tua admiradora
Margarida
Delmano (José Carlos):
Este conto é um retorno ao passado, um retrato de Portugal na década de 50.
Delmano Graça apresenta o retrato de um homem honesto e sincero que tem esperança, fé … e procura uma vida melhor para si e para os seus.
A vida só se consegue manter na crença de um futuro melhor…
Fica a mensagem do coautor:
Hoje, tal como ontem, teremos que manter viva a esperança…
A propósito (no meu entender) lembrei-me de um livro que li: "Terra sonâmbula", de Mia Couto…
Transcrevo um pequeno excerto que considero oportuno:
“O que faz andar a estrada?
É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do
futuro.”
Tua admiradora
Margarida
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