Rafael
Pinto desligou o telemóvel. A chamada era da mãe, que queria saber como tinha
corrido a entrevista. Tinha compulsivamente respondido a um anúncio para
repositor num hipermercado, condição imposta pelos pais para continuar a viver
debaixo do mesmo teto. Já viveu do subsídio de desemprego, várias vezes,
situação que acha deveras interessante. Quando se aproximava a data do fim do subsídio,
arranjava um trabalhinho que desse para depois arranjar novo subsídio. É assim
o mundo de Rafael. Contudo, em casa os pais azucrinavam-lhe a cabeça. Durante o
pouco tempo que passava em casa, o pai, principalmente, adjetivava o filho de
preguiçoso, indolente, inútil, mandrião e outros impropérios.
Escarrapachado
no sofá da sala de jantar, com os pés em cima da mesa de vidro, Rafael, com ar desmazelado,
ouvia o noticiário de um dos canais nacionais. O pivô do telejornal referia a alta taxa de desemprego, e que
«uma saída para os desempregados era a emigração». A notícia entrou-lhe por um
ouvido e ficou presa nas circunvalações cerebrais; não saiu pelo outro ouvido,
como era habitual. Emigrar? Porquê que nunca pensei nisso? Era uma solução! Deixava
de ouvir os velhos, visitava novos países e, depois de abanar a árvore
das patacas, regressava ao lar como um senhor. E para onde hei de emigrar?
Claro! Brasil. O Lula pôs aquele país a andar; aquilo está a dar grana,
há emprego à ganância e bem pago. O Tó Miranda e o Zé Bicicleta foram há
um ano para lá e já se orientaram, nem pensam em voltar. Durante a semana a
ideia foi germinando. Na sexta-feira, que era dia de ir para a brincadeira,
Rafael produziu-se: colocou umas calças brancas, uma t-shirt com tons de verde e amarelo e foi ter com o grupo habitual.
- Oi
galera. Hoje não tou para aporrinhações, nada de sapatonas, tou noutra. Não
quero ser engabelado, nada de sacanagem comigo não! Caras, me chamem de
Rafinho!
O
pessoal ficou espantando com o ar carioca e o sotaque brasileiro, e a pergunta
foi óbvia: o que se passa Rafael?
-Na
minha cuca está zanzando um barato. Vou para o Braziu!
O
pessoal ficou muito surpreso com esta atitude atrevida do amigo, mas nada
disseram, apesar de soltarem uns risos mal disfarçados. O tempo escorria e
Rafael continuava a repositar, e deixou de falar no sotaque brasileiro. Os
amigos nada questionaram. Certa sexta-feira Rafael chegou ao local de encontro,
vestia umas calças de bombazina escuras e camisola de gola alta, apesar de o
tempo não justificar tais adereços.
Os
amigos ficaram aparvalhados. Perguntaram-lhe o que aquilo queria dizer. Rafael,
já com um ar nórdico, disse que era norueguês.
-
Afinal, aquilo no Brasil, não era assim tão fácil. Não era terra para eu, o
calor é muito. A Noruega, essa sim, será o meu destino. Um país com um
nível de vida dos mais elevados do mundo, a condizer com o que pretendo. Um amigo
de escola que está em Oslo a tirar o doutoramento disse-me que arranjava um
emprego - afirmava Rafael.
As
sextas-feiras foram-se passando e Rafael voltou a vestir as velhas calças de
ganga e a t-shirt dos «Stones». Os
amigos perguntaram-lhe quando é que ele ia para a Noruega. Rafael justificou
que descartou a ideia, porque sofria de frieiras e o clima não era apropriado.
A
conversa com os amigos passou a centrar-se no «sonho americano». Isso sim era
um país para se singrar na vida. Os amigos até o ouviram, por várias vezes,
numa voz tímida, a dizer num inglês a rondar a perfeição: «Yes, I can!»
Mas
Rafael lá continuava a «repositar» no hipermercado, mas uma nova ideia
crepitava no seu cérebro. A solução ouviu de uns políticos que sugeriam aos
cidadãos desempregados, para os mais e menos habilitados, a especialização no
estrangeiro; arranjar competências e depois regressar ao país. Rafael sentiu-se
incluído. A única dúvida era saber em que se especializar. Mas a verdade é que
Rafael desapareceu de circulação. Passados uns meses, um dos amigos viu-o a
passar na Baixa, todo produzido como se fosse para um casamento. Numa tentativa
inútil de fugir ao encontro do amigo, foi confrontado a explicar a razão
daquele preparo e qual era o seu novo modo de vida. Metendo os pés pelas mãos,
lá foi explicando o que andava a fazer, e assegurou-lhe que o emprego tinha
muito futuro. O amigo estranhou, mas perguntou-lhe se tinha que andar assim
vestido. Respondeu que fazia parte da profissão. «E como que se chama essa indumentária?»,
perguntou o amigo. Com ar um pouco contrafeito, Rafael lá foi dizendo: «Fraque.»*
*
Homem do fraque = cobranças difíceis.
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