Aquela
escadaria de traquinices, ladeada por um corrimão de travessuras, não era uma
escadaria qualquer. Poderia, erradamente, pensar-se que uma escadaria tem como
fito universal servir de ligação entre pisos. Ser somente o meio de alcançarmos
um piso superior, quando estamos cá em baixo, ou descermos ao piso de baixo, se
estivermos lá em cima. Isso até pode ser verdade para a maioria das escadarias,
mas, no que àquela diz respeito, não.
Aquela
escadaria que habitava a casa antiga da avó servia para muito mais. Nela fui
polícia, subindo os degraus quatro a quatro atrás do larápio que roubou as
joias da coroa britânica. E também fui ladrão, escorregando pelo corrimão
abaixo, a fugir do polícia. Naquela escadaria fui pescador. Um nagalho comprido
com um clipe desdobrado na ponta eram as ferramentas ideais para, do alto da
escadaria, alcançar o chaveiro e, uma a uma, pescar todas as chaves sem ninguém
dar por nada. E era vital que, em especial, a avó não desse por nada.
Havia
ali chaves importantes, achava eu. Chaves que abriam portas secretas e baús de
tesouros. A avó julgava tratarem-se apenas das chaves de casa de todos os
elementos da família. As cópias suplentes, as chaves de segurança, caso alguém
um dia ficasse fechado cá fora. Mas o que sabe uma avó?
Naquela
escadaria montei uma armadilha para ursos. Coisa elaborada a minha armadilha.
Uma corda presa, lá em cima no corrimão do corredor, que caía até ao chão do
piso inferior. Aí fechava-se em nó de laçada, disfarçado por folhas secas e
pauzinhos. É claro que agora, à distância dos anos, percebo que folhas e
pauzinhos não fossem a camuflagem ideal para uma corda pousada num chão de
madeira envernizada. E que se calhar foi por isso que a avó nunca tropeçou na
corda. Dava sempre um saltinho por cima dela. E eu ficava ali horas esquecidas,
ou minutos, a segurar a corda na outra ponta, à espera que o urso lá pousasse a
pata, para eu puxar a corda e deixar o animal pendurado de cabeça para baixo.
Coisa que também nunca aconteceu. Ao que parece não há relatos de ursos à solta
na cidade do Porto, nem há trinta anos, nem agora. Por isso tu, meu filho, sobe
as escadas quatro a quatro, escorrega pelo corrimão, pesca chaves de tesouros
com nagalhos e clipes, mas não montes armadilhas para ursos. Inventa outra
traquinice qualquer, mas não montes a armadilha. É que a avó é velhinha e pode
tropeçar e cair.