quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A CARTA DO AMIGO KITE de Célio Passos


Caro amigo:

Um dia destes lembrei-me de ti. Não consegui resistir e envio-te esta carta. Com certeza, não deves estranhar este facto, talvez até estivesses à espera. Já há uns tempos a esta parte que não estamos um com o outro, mas, no passado, eras uma companhia quase diária. Primeiro, quando eras menino, depois, já jovem, e, por fim, como adulto. Nas diferentes fases da tua vida, acho que desempenhei um papel diferente, mas sempre importante. Primeiro, quando menino, foi a fase de nos conhecermos, as nossas diferenças, o fortalecimento do nosso relacionamento, o sucesso e insucesso das nossas brincadeiras. Depois, já rapaz, entrei em concorrência com os teus novos amigos, a ver quem atraía mais as tuas atenções, as célebres corridas e concursos que fazíamos nos locais onde íamos passar férias, no campo ou na praia. Recordo-me, com imensa saudade, apesar da experiência perigosa porque passei, quando nas férias na casa de campo do teu tio Albano, fomos com os teus primos e um vosso amigo inglês, que me batizou de Kite, para o rio que passava junto à quinta. A certa altura, eu caí ao rio numa zona funda e com corrente. Comecei a ser arrastado perigosamente rio abaixo, e, não fosse a coragem do teu primo Rui que me salvou de apuros, não estarias a receber esta carta. Fiquei o resto da tarde a secar e a recuperar do susto. Foi uma experiência inolvidável, mas, a partir dessa altura, vocês passaram a ter mais atenção comigo. Creio que só fomos duas ou três vezes para a quinta do teu tio, mas para mim parece que foram anos a fio. Como o tempo é relativo. Os teus namoros criavam em mim um ciúme doentio, mas como eles eram todos passageiros, voltávamos, sempre, a reencontrarmo-nos. Depois, já adultos, brincámos com os teus sobrinhos, depois com os teus filhos, e um dia, como o tempo passa, com o teu neto. Não tenho dúvida que fui uma companhia que atravessou os tempos, que sempre te acompanhou, sempre atual, apesar dos nossos corpos irem amadurecendo e envelhecendo com o tempo. Feliz é aquele que tem uma criança dentro de si. Sei que naquele tempo, a tua roda de amigos e os divertimentos que se proporcionavam eram muito restritos. Nesse tempo, também, não terias muitas opções. Na escolha de amizades os tempos são diferentes. Os pais daquela altura condicionavam muito as crianças, não lhe davam tanta liberdade de escolha como as de hoje, apesar de estarem sempre atentos a todos os sinais de perigo. Hoje, as crianças têm mais liberdade, mas enfrentam outros perigos e o acompanhamento nem sempre é o desejável; há uma moeda de troca. Para os resguardar dos perigos das suas ausências forçadas, pelos afazeres profissionais ou pessoais, compensam-nos com a satisfação de desejos, oferecendo-lhes todo o género de brinquedos e jogos mas que, para além disso, destroem a sua criatividade. Isto é o que penso sobre o assunto, aceito a tua discordância, também tenho idade e o direito moral de pensar e de o dizer. Apesar de tudo, as nossas velhas brincadeiras não estão ultrapassadas, e vejo que a gente deste tempo gosta e estão para perdurar. Sei que outro dia fizeste com uns amigos uma exposição de fotografias e eu tive um lugar de destaque. Fui recordado e admirado e gostei muito de saber disso. Soube-me bem saber que ainda não deixei de pertencer ao teu grupo de amigos que sempre estão ao teu lado em que circunstâncias forem. A amizade não passa de moda.
Como sabes, continuo a viver em casa do teu filho, naquele quartinho do sótão, com umas vistas maravilhosas, e, em especial, nas noites plenas de estrelas, lembro-me de ti. Para mim foste, sempre, uma estrela. Se um dia tiveres um tempinho, e como resisto, tenazmente, à passagem do tempo, vem visitar-me que eu prender-te-ei nos meus já frágeis cordéis e voaremos por esses céus desta nossa amada cidade. Reviveremos locais em que ambos partilhámos momentos felizes, e aterraremos, como tantas vezes aconteceu, no areal da nossa praia, onde um dia me libertaste para uma vida de sonho que ainda hoje permanece intrínseca no meu delicado e já desbotado papel. 

O amigo que nunca te esquece, 
Kite



Nota: kite é a palavra inglesa para papagaio de papel.