terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Não era uma escadaria qualquer de Helena João.


Aquela escadaria de traquinices, ladeada por um corrimão de travessuras, não era uma escadaria qualquer. Poderia, erradamente, pensar-se que uma escadaria tem como fito universal servir de ligação entre pisos. Ser somente o meio de alcançarmos um piso superior, quando estamos cá em baixo, ou descermos ao piso de baixo, se estivermos lá em cima. Isso até pode ser verdade para a maioria das escadarias, mas, no que àquela diz respeito, não.
Aquela escadaria que habitava a casa antiga da avó servia para muito mais. Nela fui polícia, subindo os degraus quatro a quatro atrás do larápio que roubou as joias da coroa britânica. E também fui ladrão, escorregando pelo corrimão abaixo, a fugir do polícia. Naquela escadaria fui pescador. Um nagalho comprido com um clipe desdobrado na ponta eram as ferramentas ideais para, do alto da escadaria, alcançar o chaveiro e, uma a uma, pescar todas as chaves sem ninguém dar por nada. E era vital que, em especial, a avó não desse por nada.
Havia ali chaves importantes, achava eu. Chaves que abriam portas secretas e baús de tesouros. A avó julgava tratarem-se apenas das chaves de casa de todos os elementos da família. As cópias suplentes, as chaves de segurança, caso alguém um dia ficasse fechado cá fora. Mas o que sabe uma avó?

Naquela escadaria montei uma armadilha para ursos. Coisa elaborada a minha armadilha. Uma corda presa, lá em cima no corrimão do corredor, que caía até ao chão do piso inferior. Aí fechava-se em nó de laçada, disfarçado por folhas secas e pauzinhos. É claro que agora, à distância dos anos, percebo que folhas e pauzinhos não fossem a camuflagem ideal para uma corda pousada num chão de madeira envernizada. E que se calhar foi por isso que a avó nunca tropeçou na corda. Dava sempre um saltinho por cima dela. E eu ficava ali horas esquecidas, ou minutos, a segurar a corda na outra ponta, à espera que o urso lá pousasse a pata, para eu puxar a corda e deixar o animal pendurado de cabeça para baixo. Coisa que também nunca aconteceu. Ao que parece não há relatos de ursos à solta na cidade do Porto, nem há trinta anos, nem agora. Por isso tu, meu filho, sobe as escadas quatro a quatro, escorrega pelo corrimão, pesca chaves de tesouros com nagalhos e clipes, mas não montes armadilhas para ursos. Inventa outra traquinice qualquer, mas não montes a armadilha. É que a avó é velhinha e pode tropeçar e cair.