terça-feira, 19 de novembro de 2013

Um novo dia de Eliane F. C. Lima.


Eliane F.C.Lima (Registrado no Escritório de Direitos Autorais - RJ - Brasil)

Com os olhos ainda fechados – tentativa de não acordar de todo –, quis se espreguiçar longamente... mas, em vez de sentir os músculos se estirando, nada sentiu. Ao mesmo tempo, havia uma sensação vaga, alguma coisa que devia lembrar.
Tornou a tentar alongar os braços e pernas, só para testar, mas ainda agora não conseguia aquela sensação gostosa de todas as manhãs.
Mesmo contra a vontade, começou a arriscar a abrir os olhos. Muito devagar, era o truque que tinha desenvolvido para entrar aos poucos em contato com a realidade. Realidade, porém, era uma palavra que não parecia calhar com a situação.
Tentando abrir os olhos, pálpebras pesadas ainda, não viu a luz da janela. Então era isso, vai ver que não tinha amanhecido, nem madrugada fosse. O cérebro se recusava a engrenar fora do horário.
Se não via, queria ouvir o que se passava em volta, pois havia algum som, havia. Um rumor vago, parecia sussurro. Era um som conhecido, que não conseguia identificar exatamente. Choro? Era choro? Um lamentoso choro de sofrimento, que estranho! Alguém estava chorando.
Um sonho, com certeza. Aquela impossibilidade de se mexer, de abrir os olhos, de ouvir com clareza. Em sonho era sempre assim. Na verdade, começou a sentir um leve sobressalto. Mais do que sonho, pesadelo.
Mas havia um cheiro. Contínuo, envolvente. Entrando pelas narinas. Um perfume, quem sabe. De flor. Meio nauseante.
O sobressalto começou a se transformar em pânico. Havia um fato para ser lembrado. Precisava se lembrar do que tinha de ser lembrado. Era como se houvesse uma urgência naquilo. Talvez fosse a chave para acordar.

De repente, saindo das profundezas do inconsciente, a lembrança veio. Avassaladora. Tremendo da cabeça aos pés, todos os seus sentidos se conectaram. E, retesada cada parte de seu ser, levitou acima de todas as flores em que estava mergulhado, de todas as pessoas taciturnas, que o olhavam, lamentosamente, e partiu pela janela, finalmente, acordado.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Nem às paredes confesso de António Alvarez.

Capítulo V -  «Quentes e boas»


«Quentes e boas! Quentes e boas!» – o pregão vinha da boca de um velhote que, junto a uma motoreta, sacudia o assador de castanhas.
O mês de Novembro ia frio e os transeuntes usavam as suas roupas mais quentes. Quer grandes ou pequenos apressavam o passo na direção dos transportes que iriam apanhar de regresso a suas casas.
O Cais do Sodré apresentava-se naquele fim de tarde de inverno com uma infinidade de trânsito assustadora. Os autocarros e elétricos passavam apinhados de gente que regressava a suas casas. Os carros acendiam as luzes de presença porque o sol se escondia atrás de nuvens cinzentonas e a claridade era como que um «lusco-fusco».
João caminhava junto da sua amiga Ana Luísa em direção à estação.
- Ana, que tal umas castanhas? Apetece-te?
- Acho que sim – respondeu. – Com este friozinho vem mesmo a calhar.
- Então quantas vão ser «meus meninos»? Uma dúzia ou mais? – perguntou o velhote na esperança de mais um dinheirito que iria colocar no bolso das calças já coçadas.
- Uma dúzia se faz favor – respondeu João enquanto tirava o porta-moedas do bolso do casaco.
Ana Júlia era estudante de jornalismo e ambicionava fazer carreira no Diário de Notícias. Para isso contava com um amigo do tio que trabalhava na redação desse jornal. Tinha 22 anos e, tal como João, tinha vindo imigrada para Lisboa. A sua família era também do Alentejo, concretamente do Ciborro, uma pequena aldeia pertencente ao concelho de Montemor-o-Novo. Talvez fora isso que os fizera aproximar ou tão-só a coincidência de gostarem ambos de jornalismo.
- Estão tão quentes que até queimam! – queixou-se Ana.
- É verdade – retorquiu João.
Caminhando, foram subindo a Rua do Alecrim em direção ao Chiado.
Aquela sexta-feira era o culminar de uma semana e o início de um descanso merecido. As luzes dos candeeiros tinham-se entretanto acendido e a claridade que deles emanava dava um toque de «velha dama» à cidade.
- Ana, achas que daria para jantarmos um destes dias? Eu pago! – apressou-se a dizer.
- Porque não. Quando eu tiver uma folga da faculdade combinamos isso – respondeu Ana, com um esboço de sorriso nos lábios.
João sentiu-se como um «miúdo pequeno» a quem alguém lhe prometera uma guloseima.

……………

Álvaro contemplava a paisagem e reparava nas casas que do outro lado do rio iam aparecendo como que de pirilampos se tratassem. Quase não dava conta do cigarro que ia queimando no cinzeiro do parapeito da janela.
Entretanto, o seu pensamento ia voando por um passado ainda recente. O dar a mão ao João era das melhores coisas que fizera na vida. Quem lhe dera a ele, quando ali tinha chegado, ter havido alguém que lhe tivesse feito o mesmo. Mas a vida é mesmo isso.
Ouviu, vindo das escadas, passos de duas pessoas que vinham subindo.
- Quem será?, pensou.
- Sr. Álvaro, dá licença que a minha amiga Ana Júlia entre?
- Entrem os dois com certeza. Lá fora é que não vão ficar, claro!
- Deixa-me que te apresente o Sr. Álvaro Fontes de quem já te tinha falado.
- Prazer, Sr. Álvaro. Chamo-me Ana Júlia – e esticou a mão cerimoniosamente.        
- Muito prazer, Ana! Entra e senta-te à vontade – retribuindo o cumprimento. - E tu, João, como é que foi o dia? Muito trabalho?
- Menos mal, Sr. Álvaro. A «rotativa» avariou mas o mecânico conseguiu resolver o problema.
Ali reunidos, em pleno «coração» da cidade, três alentejanos que tinham «fugido» da província e que procuravam o seu futuro na capital. Tal como eles, muitos outros buscavam o «el dorado» e uma vida melhor. O futuro seria o que fosse. 

(Continua)