quarta-feira, 17 de julho de 2013

Melodia de um dia sem nome de Cristina Barbosa.


Uns metros adiante, parou o carro. O rapaz corria na sua direcção. Cansado, desapontado, prestes a perder as forças. Óscar vira-o pelo espelho retrovisor. Era noite, madrugada já, bem vistas as coisas. Assustava-o que pudesse ser um ladrão. As notícias a que todos os dias tinha acesso deixavam-no naturalmente alarmado.
Por isso mesmo, ponderava o que fazer. «Rápido» – exigia a si mesmo –, «que o rapaz havia de estar a aproximar-se.»
– Ora bolas, que raio de sorte a minha – vociferou Óscar.
Há muito que não fazia aquele turno até às duas da manhã e, logo na noite em que ficara, o que lhe havia de acontecer. Já não bastava não gostar de andar só durante noite. O seu horóscopo também não era muito favorável naquele dia. Procurava convencer-se de que não acreditava em previsões, mas, mesmo assim, algo havia que o atemorizava.
Viu um vulto surgir na curva. Sem hesitar, acelerou. Desapareceu daquele lugar num instante e, sem que pudesse reagir, algo se cruzou no seu caminho e voou sobre o capot.
Óscar encostou-se ao assento, assustado. Entre as mãos, segurava não o volante, mas a coberta da cama.
– Se eu pudesse, fazia o percurso a pé todos os dias – dizia um homem, na cama ao lado. – Mas tenho aqui um mal num pé que mo não permite – lamentou.
– Mas, se pudesse, havia de ir até ao hospital a pé – continuou, após alguns segundos em silêncio. – Olhe que vinha.
Óscar olhou-o e acenou positivamente com a cabeça, ainda que confuso. Não sabia exactamente onde estava nem percebia a razão pela qual o homem falava sozinho.
«Estarei num hospício», pensou, sorrindo animado. Procurava, assim, distrair-se.
– Dói-me muito este pé – disse o homem, apontando para o pé direito. Tinha tanto para dizer, sufocado que se sentia por aquele silêncio.
 – Mas aqui no hospital vejo que nada tenho, comparado com o mal dos que aqui estão.
Óscar anuiu com um «Pois, é verdade.»
– Imagine só – voltou o homem. – Na semana passada, queixei-me de uma faringite, afonia e alguma febre. Imagine! Do que nos queixamos nós.
Óscar reparou entretanto na melodia que se fazia ouvir pelo quarto. Incómoda. Como um choro verdadeiro, contido. Choro de mágoa e de dor. Certas melodias, pensava, carregavam um peso enorme. Como se suportassem e carregassem a dor do mundo.
Antes mesmo de Óscar pedir, o homem baixou o som.
– Boa música, esta – disse ainda assim.
Óscar nada respondeu. Nem sequer acenou com a cabeça, como fazia para fingir estar atento ao que o homem lhe dizia. Olhava o tecto e pensava. Não dormira naquela noite, mas tinha ainda esperanças de se reconciliar com o sono durante o dia.
– Avô! – ouviu-se bem alto, de repente. Uma menina correu, depois, na direcção do homem da cama ao lado, com duas flores na mão.
– São para ti! – disse, enquanto abraçava o homem, agarrada ao seu pescoço.
– Que bonitas! – exclamou o homem. – Onde as foste arranjar, minha querida?
A pequena afastou-se um pouco. Baixou a cabeça. Parecia ter uma confissão a fazer. Enrolou a pena esquerda na perna direita. Entrelaçou os dedos nervosos. Depois afastou ambas as mãos, voltando logo a cruzá-las.
– Humm… – balbuciou, por fim. – Apanhei num jardim aqui perto. Mas foram só duas, avô – disse, procurando desculpar-se.
O homem sorriu, divertido. Óscar sorriu também. Fossem todos os furtos como o daquelas duas flores.
– São para te animares, enquanto cá estás – continuou a pequena, com o seu melhor sorriso.
O homem puxou-a para perto de si e deu-lhe um grande abraço.
– São bonitas, minha querida!
– Óscar Peixoto?! – perguntou um homem, que se aproximara de Óscar, alheio e indiferente a toda aquela situação ternurenta que ali se vivenciava.
– Desculpe? – perguntou Óscar.
O homem, completamente vestido de negro, segurava os óculos escuros.
– O senhor não sabe o seu nome? – perguntou, ripostando.
Óscar nada disse. Não sabia o que fazer, nem sequer o que dizer. Pior que tudo, não conseguia recordar-se de quem era.