sexta-feira, 28 de junho de 2013

Vão-se os anéis, que fiquem os dedos de Helena João.


Manhã cinzenta e miudinha de chuviscos, aquela. Manhã triste, na cidade que teima em não abandonar o Inverno. Manhã triste, nela que leva a morte na alma. Mas só na alma leva a morte. Quem a observar, atentamente, vê uma septuagenária bem arranjada. Os cabelos brancos de prata estão apanhados num carrapito no alto da cabeça, ladeado por duas travessas. Uma echarpe, em tons de rosa seco, despreocupadamente enrolada à volta do pescoço, protege contra o vento que se faz sentir, enquanto, ao mesmo tempo, ajuda a ocultar as encorrilhas que a gravidade proporciona. O saia-casaco claro, dá-lhe ares de executiva e tira-lhe, pelo menos, uns quinze anos de cima. Os sapatos são rasos. Uma prótese de anca não combina com tacões agulha. Nem o semblante a denuncia. Não é carregado, como se espera em quem leva a morte na alma. Segue pela calçada, em passos decididos, esquecida do vento e da chuva. Esquecida da morte que leva na alma.
Chagando ao destino, estanca, só por uns segundos, à porta. Contempla aquele local onde o bisavô a levara tantas vezes, para apreciar velharias. Aquela loja de penhores é uma das mais antigas da cidade. Remonta ao século XIX, mas decerto já nasceu velha.
Entrou. Lá dentro o tempo não passa. Continua com o mesmo cheiro a  livros encadernados a couro e a folhas amarelecidas. Continua com o mesmo ar de desarrumação arrumada onde apenas o Sr. Zeferino se orienta. Ao fundo fica a estante. Um móvel de madeira de castanho, um pouco carcomido pelo caruncho e pejado de livros. Quem sabe, quantas primeiras edições não se escondem ali? Pelo meio, a divisão ampla, aloja pequenas mesas, cómodas, um ou outro armário camiseiro, secretárias e várias poltronas. Em cima destes móveis um outro mundo se desvenda: discos de vinil, brinquedos antigos, velhos eletrodomésticos, peças de louça, tudo numa amalgama ilógica e colorida. À direita, o balcão das joias. Respira fundo e avança na sua direção. Da bolsa retira algumas jóias que entrega ao velho Zeferino. Observa-o enquanto ele pesa aqueles pedaços do seu passado, um a um. No final, feitas as contas, ainda não chega. A hipoteca sobre a casa é grande, ainda não chega. Fecha os olhos, só por um momento e ouve a bisavó que lhe sussurra “deixa ir o trancelim”. O trancelim de ouro que o bisavô Eduardo dera à bisavó, como prenda de casamento. É passado pelas mulheres da família e agora é dela. E agora é do Sr. Zeferino. Com uma lágrima teimosa deixa ir o trancelim. Agora já chega.
Sai da loja e respira o ar frio da manhã cinzenta. Já não leva a morte na alma. Vão-se os anéis, ficam os dedos. Fica a casa. E com ela fica o fantasma da bisavó, de braço dado com o bisavô Eduardo e o trancelim ao pescoço.