terça-feira, 28 de maio de 2013

Vida cara de Eliane F. C. Lima


(Conto registrado no Escritório de Direitos Autorais - Rio de Janeiro - Brasil)

Sentada na cama, as tralhas ensacadas. Lágrimas, não há mais. O rosto inchado, apenas observa em volta. Tarefa simples: um armário de duas portas, dentro do cubículo. Calor insuportável no verão; umidade entrando nos ossos no inverno.
            Tinha criado a filha com muito esforço, solteira, ingênua que fora. Nunca se queixou. A menina enchia-lhe a vida. Pobre, muita faxina tinha alimentado suas bocas, pago seu quartinho, a roupa pouca, os livros da pequena. Estudo reduzido, mas muita honradez ensinada pela mãe.
Não tinha podido garantir sua velhice, contudo. Sobrava dinheiro para isso? A mocinha casara cedo, felizmente. Marido era um homem honesto, trabalhador. Nada faltava em casa. Mas sempre renegara a herança da mulher: a mãe.
            Naqueles anos todos, ela, “a velha”, como ele dizia, sem o menor acanhamento, tinha feito tudo para agradar ao genro: lavava as roupas dele, passava com carinho para ver se merecia ao menos consideração. Nada. O homem dizia que aquilo nem correspondia à parte do feijão comido. E o resto? Quarto – quarto? –, luz, água e tudo o mais? Que sina a dele ter de trabalhar o dobro para sustentar boca adicional!
            A filha, muito submissa, reclamava no quarto, à noite. As vozes se alteravam. A senhora se encolhia toda na cama.
            No dia seguinte, a própria mãe abraçava a outra, ambas lacrimosas, e aconselhava que não fizesse aquilo, imagine, atrapalhar sua felicidade. Os homens eram assim mesmo... e onde iria achar outro tão bom, cumpridor de seus deveres? A moça tentava acreditar.
            Agora ele tinha decidido e arranjado tudo. Descoberta uma prima dela, velha também e doente, no interior, tão longe, despachava a sogra para lá.
Saindo pela boca, já, a saudade de sua menina. Mas conformava-se, pensando que libertava a filha para ser feliz. Fosse o que fosse, nunca mais a moça engoliria aqueles desaforos e, afinal – deu um suspiro fundo –, a prima era uma pessoa boa e pacata.
            Um “Mãe, tá na hora”, resgatou-a dos devaneios. Levantou-se, condenado à morte, convocado por guardas e padre que lhe batem à porta.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Rua Onde Nasci de Manuel Vasquez.


A rua onde nasci fica situada em Lisboa, cidade do meu afecto, do meu amor e da virtude em ser hoje homem.
Foi naquela rua que aprendi a andar, a caminhar para ir para a escola e para a brincadeira e a jogar à bola. Foi também naquela simples rua que um dia parti o vidro da vizinha, que chorei uma paixão não correspondida e fui para a escola primária e mais tarde para o liceu e para a faculdade. Foi lá que me sentei na porta da minha antiga casa e esperei por minha mãe e meu pai, porque afinal nem a chave da porta tinha. Tantas coisas tem a rua onde nascemos que nem sequer as vemos, mas na minha rua até pedras, muros e formas eu conheço. Foi ali que senti calor, frio e chuva e andei de um lado para outro.
Eu tenho uma rua onde nasci e lembro-me dela, recordo-a como se fosse minha, pois no meu coração tem um canto que, ao vê-la, a sinto como se fosse familiar, amada e martírio. Vi por ela passar velhos, novos e miúdos, vi meu filho e minha filha aprenderem a andar. Foi ali mesmo em frente à minha porta que um dia fui noivo para a igreja e me casei e vi chegar tantas vezes meu pai e minha mãe. O que ela lavava e varria. Que saudades tenho da minha rua, tão bela, com as portas de todos os vizinhos que amo. Tenho a lembrança de suportar a dor de os ver também partir.
A rua de Lisboa é identificada, mas falta a história. Foi de pedra basalto, mais tarde alcatroada, esburacada com novos apetrechos e dotes de urbe ou capricho de engenheiro da câmara.
Todos os que por uma rua passam nem imaginam o que se passou e passa — zanga, paixão, dor, amor — e tanto sem ver se sente, nos muros, nas pedras e até nas ervas limpas pelo homem dos serviços municipalizados. As ruas eram lavadas, varridas e mantidas limpas, com lixos, bichos e outros, com muitas coisas e vida havia na rua e há por certo na rua onde nasci.
Recordo que observava de menino o formigueiro que por ali passava e as gentes, o comércio e a luta que despertava e me fazia ver que a vida é mais.
Na rua identificava o Sr. Costa, que numa carrinha Volkswagen, tipo pão-de-forma, vendia pão que eu também ia comprar. Nessa mesma rua vinha um casal — a D. Rosa e Sr. José — com a carroça, com uma égua sublime e forte. Vendiam fruta e legumes e riam, divertiam-me, e sabiam que eu um dia queria ser médico e sou. Também me lembro do homem do «pitrólio», do funileiro que concertava panelas e tachos. Do Ti Amolador e da sua gaita-de-beiços a anunciar chuva, a reparar e a amolar tesouras e facas. Recordo-os com saudade e gosto, todos eles foram meus heróis e vida de ser e gostar.
Quantas cores, odores e amores tive na simples rua e vi flores de Primavera, retive frio de Inverno, recebi granizo no pêlo, calor passei e tanto suei com a recomendação de minha mãe: «Usa sempre chapéu!»
Por aquela serena e discreta rua passaram trabalhadores, operários, presidentes, ministros e mais gente rica e pobre, honrada e imaculada e manchada pela desgraça. Nessa rua minha mãe ensinou-me sempre a olhar as gentes e dizer coragem, esperança, dar, ouvir e nem sempre desconfiar. Com meus pais aprendi o que sou, pois foi isso que aprendi na rua onde nasci.
Na minha rua meu irmão fugiu de uma vaca que se tinha escapado de um barco da zona ribeirinha e que até veio no jornal, colhida nem tanto e hoje esquecida, mas que assustou tudo e todos.
Aprendi ali a conduzir e a saber andar de bicicleta, mas também de patins, ali na minha rua caí e esfolei-me. Tantas coisas aconteceram: revolução, procissão e até conversa amena em noite de Verão. Sentados ao fresco, vizinhos e amigos, era a antiga Lisboa, eram gentes que vinham de fora e se integravam no mundo citadino. Ali havia pedreiros, carpinteiros, doutores e amigos, hoje nunca esquecidos, pois, se nos encontramos, festejamos e adoramos lembrar, ai lembrar, os tempos daquela simples rua de Lisboa.
Vi moças bonitas, casamentos e batizados, funerais e mais que me esqueci, mas houve um dia que chorei e me despedi da minha rua. Meu pai partiu, minha mãe também, fomos eu e meu irmão e chorámos tanto, abraçámo-nos naquela rua que foi nosso berço e embalo, doença e alegria e agora um adeus tenho de dar.
Volto e voltarei ali a passar e direi: «Morei aqui e amei.»
Lembrança forte e terna da rua onde nasci.