segunda-feira, 22 de abril de 2013

A Velha de Célio Passos.


Numa vila do interior minhoto, vivia uma velha que ninguém sabia de onde é que tinha vindo. Não nascera na terra, não tinha parentes, e sobre a sua idade ninguém sabia, nem ela própria. Seu nome? Dizia que se chamava Maria. Maria quê? Com um olhar a perder-se no infinito, repetia: Maria!
Havia gente que simpatizava com ela, outras achavam que era uma bruxa, e desprezavam-na por nojo ou medo. Havia quem lhe pedisse conselhos dos mais variados: como tirar as nódoas de tinta de uma camisa e nódoas de sangue de uma blusa ou como se deviam tratar tais flores ou frutas, inclusive perguntavam-lhe como seria o tempo para os tempos próximos. A tudo isto respondia com precisão. Questionavam-lhe como é que sabia tanta coisa, e ela respondia que era dos anos que transportava às costas.
No seu corpo corroído pela idade, tinha umas mãos que mentiam a sua velhice. Eram umas mãos com poucas rugas, uns belos dedos, pele suave como seda. Era uma sensação maravilhosa tocar aquelas mãos. Tinham poderes curativos, diziam, mas ninguém nem os próprios curados confirmavam, talvez por receio. Foi o caso do rapaz que tinha os vulgarmente chamados “cravos” e que desapareceram de um dia para o outro quando ela passou as suas mãos pelas dele; ou da rapariguinha, já namoradeira, que tinha um vermelhão na pele que não havia remédio ou mezinha que lho tirasse. Ela acariciou-lhe a cara, os braços, o pescoço e o colo, e, dois dias depois, a jovem foi-lhe agradecer. Estava limpa de todo o mal.
Um casal também a procurou, pois a sua filha Carla de 9 anos tinha desaparecido. Mas a velha remeteu-se ao silêncio. Os pais não ousaram insistir, principalmente o pai, que estava com um ar comprometido e que arrancou à força a mulher de junto da velha.
Aparecia todas as manhãs, cedinho, empurrando uma carreta. Nos tempos frios vendia castanhas assadas e, nos de calor, flores de uma beleza sem par, ou fruta, das variedades menos conhecidas: dióspiros, romãs, kiwis, figos, maracujás, de uma qualidade insuperável. Tinha, sempre, algo para comercializar.
Os colegas vendedores, curiosos pela qualidade dos seus produtos, tentavam saber onde ela os adquiria. Na resposta, entre um belo sorriso que os anos não lho tiraram, dizia-lhes que era o Anjo. Pensaram os colegas que seria um lavrador lá da terra, o António Anjo, mas, quando lhe perguntaram, ele respondeu que nunca lhe vendera coisa alguma.
Comia a sua sopinha, todos os dias, na tasca do Sr. Manuel e, no final do dia, pegava na carreta e no banquinho onde se sentava, num recanto entre a cabina do posto de transformação da electricidade e uma casa desabitada, mesmo no centro da vila, onde semanalmente se fazia a feira, e dirigia-se por um caminho estreito enquadrado por sebes em direcção ao rio.
O rio não era largo, mas era profundo. Tinha uma tosca ponte de madeira. A velha, todos os dias, uma vez para cá, outra para lá, atravessava-a. Do outro lado, o terreno era diferente, perdia toda a geometria, só pedregulhos e mato. Diziam que existiam cavernas e covas onde feras disputavam o lugar.
Era um sítio que metia respeito, mesmo medo. Ninguém, a não ser a velha, se arrojava a atravessar o rio. Diziam também que andavam por lá almas penadas e espíritos malignos.  
O tempo escorria, e este ritual da velha era uma constante no dia-a-dia. A gente da terra gostaria de saber onde era a alcova da velha, mas ninguém tinha coragem ou ousadia de atravessar a ponte.
Até que um dia a velha escafedeu-se.
O Sr. Manuel, o tasqueiro, que se afeiçoara à velha, ousou procurá-la. Foi buscar coragem aos anos que era considerado um homem valente e, armado de um cajado, atravessou a ponte. Um estreito carreiro desmatado, marcado pelo rodado da carreta, subia em direcção a uns gigantescos penedos. Disfarçado por um emaranhado de trepadeiras, vislumbrou um buraco que era a entrada de uma caverna. Manuel entrou. O local era de médias dimensões. Era quente e limpo e o chão atapetado com flores silvestres, muito pequeninas. As paredes estavam secas e brilhantes, preenchidas de variedades de quartzo, leitoso e róseo. Era deslumbrante. A um canto encontrava-se um catre com roupa. Mais ao fundo pequenas volutas de fumo espiralavam restos de uma fogueira junto a uns utensílios de cozinha.
Ouviu uns sons sumidos no fundo da caverna. Aproximou-se. Em pequenas caixas de frutas, em caixotes de madeira ou mesmo em recipientes de plástico, forrados por macias folhas, estavam animais, principalmente gatos e cães, e até um raposinho, que estavam a ser tratados de ferimentos ou de doenças. Socorrendo-se de plantas medicinais que a velha era conhecedora, os animais estavam quase totalmente recuperados das suas maleitas. Era um autêntico hospital veterinário, na sua simplicidade, de que as coisas simples são feitas. A velha nutria um verdadeiro amor por estas criaturas. Na sua incredulidade, Manuel nem se apercebeu que alguém se aproximou dele. A velha colocou a mão sobre o seu ombro. Nada disseram, nem era preciso. A ausência estava justificada, aqueles seres vivos estavam a necessitar dos seus cuidados. De súbito ouviu a voz de uma criança. Atónito, viu que era a Carla que desaparecera da aldeia fazia tempo. A velha contou-lhe o que se passou com a menina. O pai abusava dela, e esta teve de fugir de casa. Pediu ao Manuel que a levasse à casa dos avós e que participasse o acontecimento à Guarda. Disse-lhe ainda que um dia regressaria e que havia mais animais e gente a precisar dos seus serviços.
A velha afastou-se de Manuel. Deu-se uma epifania. A caverna inundou-se de uma luz brilhante. Uma aura branca luminescente envolveu a velha. O brilho aumentou até que preencheu a totalidade do seu corpo. Esta deixou de ter forma humana e transformou-se num objecto tridimensional na forma de uma imagem. A imagem levitou e desapareceu por entre uma concavidade da gruta.   
Com decisão, Manuel pegou na criança ao colo e saiu da gruta. Adentrou-se pelo mato na procura do caminho que o levasse ao rio. Atravessou a ponte e com o auxílio de uma pesada vara ferro, que o destino ali lhe colocara, desfez a ponte. O rio que ia caudaloso fez o resto do serviço e arrastou a ponte feita em bocados. Tinha a plena convicção de que a velha não queria que aquela gruta fosse alvo de invasão ou se transformasse num lugar de culto.
Manuel foi fazer o que a velha lhe pediu: entregar a criança aos avós e de seguida foi à Guarda.
Taciturno, regressou à tasca. Ninguém lhe arrancou qualquer palavra.
Estranharam que a ponte tivesse deixado de existir. A falta da velha foi comentada e por alguns sentida. O tempo tudo esquece.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Ponteiros desorientados numa manhã de um hoje sem data de Cristina Barbosa


Correu rua abaixo. O autocarro estava atrasado, disse-lhe um velhote sentado na paragem. Esperou de pé. Lembrou-se de ter lido um dia que, para descansar, basta depois de morto. Sorriu ao pensar nisso. Algum sentido fazia, reconheceu. Cansou-se, porém, de esperar. Os minutos sucediam-se uns atrás dos outros. O velhote, por sua vez, olhava-a com atenção, procurando, a todo o custo, lembrar-se de onde a reconhecia.
Decidiu sentar-se, finalmente. O velhote ajeitou-se no banco, para que ela se sentisse bem. As pessoas à sua volta reclamavam, baixinho, o atraso do autocarro. Ela, porém, parecia distanciar-se de toda aquela confusão. Tivesse paciência e reclamaria também. Afinal, mal dormira de noite e, na verdade, aquele atraso não estava a ser uma boa forma de começar o dia.
O velhote olhou o livro que Carla segurava sobre as pernas. Fingiu interesse, não fosse alguém desconfiar que não sabia ler. Logo ele que – como se gabava – era «um dos tipos mais espertos que as pessoas algum dia poderiam conhecer». Mal sabia que aquele calhamaço mais não era do que um livro de economia que, nem mesmo assim, poderia resgatar o seu país da miséria.
– Olhe lá, ó jovem – disse ele, aproximando-se de Carla. – Pode dizer-me as horas?
– Oito e dez – respondeu ela, olhando-o fugazmente.
– Obrigado – agradeceu ele, desculpando-se logo depois:
– É que me esqueci do relógio.
À volta, maldizia-se ainda o atraso do autocarro, a subida de preços e o encerramento da fábrica lá da zona, que empurrara para o desemprego imensas pessoas. As perspectivas negras de cada dia. E o frio, perante aquele drama negro e de arrepiar, quase nem incomodava, naquela manhã de Novembro.
– Já não sei quem nos há-de valer – desabafou o homem, na direcção de Carla. – Haja saúde ao menos – salvaguardou.
Carla estava sem qualquer vontade de responder ou de iniciar ali uma conversa. Não queria, ainda assim, ser indelicada ou parecer mal-educada. Bem sabia que ninguém tinha culpa da sua má disposição matinal. Invejou, por momentos, a vizinha do andar de cima que, logo pela manhã, quando por ela se cruzava, era já com um belo sorriso no rosto. Em casa, já devia ter vestido os miúdos, feito o pequeno-almoço e deixado roupa a lavar. Teria, por certo, ideia do que seria o almoço. Adiantara, talvez, qualquer coisa. E, depois de tudo isso, saía de casa sorridente. Apesar de correr, atrasada, entre bons-dias apressados.
À frente da paragem, um carro travou inesperadamente. O miúdo, esse, ficou plantado na passadeira. Não sabia se devia recuar, correr, chamar pela mãe. O velhote levantou-se e reclamou contra a falta de prudência na condução. O homem que conduzia fingiu ignorar os gestos impetuosos e desmedidos de algumas pessoas que reclamavam.
– Cambada de idiotas! – berrou o velhote. – Não vêem por onde andam.
O miúdo, assustado, correu para o outro lado da estrada, onde ficava a escola. Se a mãe soubesse o que lhe tinha acontecido, não o deixaria ir para a escola sozinho durante uns bons tempos. E ele que pedira tanto, porque, afinal, já era um rapaz crescido. Desejou que a cena não tivesse sido presenciada por nenhum conhecido. Não tinha sido, de facto.
O autocarro havia tido um acidente, soube-se, entretanto. No escritório, a vizinha de Carla, que todas as manhãs sorria, chorava. Fora, sorrateira, para a casa de banho. Trancara-se lá dentro, depois do aviso que, juntamente com outros trabalhadores, recebera.
Já Carla, cansada de esperar, decidiu fazer o percurso a pé. Quando a viu levantar-se, o velhote pensou perguntar-lhe se era a filha do senhor Jerónimo, o padeiro. Aquela que, dizia-se, estava a estudar para ser economista. Não perguntou. Estava convencido de que era, realmente, ela. Até tinha semelhanças com a mãe, observou ele. Arrependeu-se, porém, de não lhe ter perguntado as horas, que o tempo, esse, passava a correr.