quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Nem às paredes confesso de António Alvarez.


Capítulo IV – “Com um brilhozinho nos olhos”


Ouviu o chiar do eléctrico que passava cá fora na rua. Espreguiçou-se e olhou o sol que começava a entrar pela janela dentro. Sentiu passos na cozinha.
- Bom, parece-me que está na hora de me levantar! – pensou. Ainda que fosse domingo, não lhe apetecia ficar ali naquela madorna. Gostava de se levantar e ir para a rua passear e conhecer a cidade. Havia ainda tanto para conhecer.
- Então João, já acordaste? – o Álvaro já tinha ouvido o barulho das molas do velho colchão que se fazia ouvir naquela pequena casa.
- Bom dia Senhor Álvaro! Eu ainda a dormir e o senhor já levantado. Desculpe lá!...
- Não há problema. Hoje é domingo e sempre dá para dormirmos um pouco mais. Eu é que já tenho esta rotina no corpo e, quer seja de semana ou feriado, acordo “com as galinhas”! Já fui ao pão e já preparei o pequeno-almoço.
A mesa estava posta com a cafeteira do café, um púcaro com leite, pão fresco, manteiga e um naco de marmelada. As canecas estavam uma de cada lado da mesa. Pequenos bancos de madeira em frente de cada lugar. A cozinha não era muito grande mas dava perfeitamente para duas pessoas. Uma janela virada para o Tejo era o ex-líbris daquela pequena casa situada no Príncipe Real. Bom, não era propriamente uma casa, eram umas “águas-furtadas” de um prédio. Dois quartos, uma pequena sala, a cozinha e uma casa de banho, um pouco pequena, compunham as divisões. Mas só a vista era tudo...
[...]
Do lado da Misericórdia o eléctrico vinha em direcção ao Rato. Os dois caminhavam junto ao miradouro de S. Pedro de Alcântara. Poucos transeuntes se viam na rua. Apenas alguns idosos, uns cachorros que percorriam o jardim e o ardina, de bolsa à tiracolo, que apregoava o Diário de Notícias e A Bola. O domingo estava convidativo ao passeio pela cidade.
- João, estava a pensar irmos dar uma volta por Alfama – disse Álvaro enquanto acendia um cigarro SG Gigante. – É uma zona da cidade bem castiça e que de certeza vais gostar.
- Claro que vou gostar! Conheço ainda tão pouco e, além disso, tenho curiosidade em ver essa zona. Já ouvi falar tanto nela.
Desceram pelo lado do Chiado. O Álvaro ia-lhe chamando a atenção para as igrejas, para a Brasileira e para as casas de moda chique da cidade. Continuaram em direcção à Rua da Conceição e depois subiram direito à Sé Velha. A intenção de Álvaro era levá-lo ao Castelo de S. Jorge, donde se desfrutava uma magnífica vista sobre Lisboa, sobre o Tejo e sobre Cacilhas do lado de lá do rio.
- Depois de conheceres a cidade havemos de ir a Cacilhas comer uma caldeirada “regada” com um bom tinto. Isso tem de ser – disse-lhe Álvaro.
- Claro que havemos de ir! Apesar de eu não gostar lá muito de peixe... – respondeu o João.
- Comes outra coisa, não te apoquentes!...
A caminhada foi-se alongando por becos, travessas, calçadas e escadinhas da velha Alfama. Algumas velhas tascas ainda conservavam o ar de tempos idos. Com os carapaus fritos no prato, os queijos alinhados e encimados por uma rede mosquiteira, as sandes de torresmos e umas mesas com tampo de mármore já gasto do tempo. Dois ou três velhotes a beberricarem e a jogarem dominó.
- Eh lá Álvaro! – Ouviu-se uma voz por detrás dos dois.
Viraram-se os dois e Álvaro “disparou” em direcção ao homem da voz que o chamara.
- Ah grande Gândara! Estás mesmo bom? – abraçavam-se os dois enquanto, curioso, João observava a cena.
- Quem é esse aí? Não me digas que é teu filho?
- Não. É um amigo da minha terra a quem eu ando a mostrar a cidade.
E, voltando-se para João, apresentou-o:
- João, este é o Gândara!
- Muito gosto!
- Igualmente rapaz!
- Então, e tu como é que vão as coisas? – questionou Álvaro.
- Olha, cá se vai andando e desandando conforme os dias. Uns dias trabalha-se outros não.
Gândara tinha sido seu “camarada de armas” em Angola. Tinham partilhado muito “mata” e muita sede.
- Olha, vamos aproveitar este encontro e almoçar numa tasca “catita” que eu conheço. Que dizes?
- Vamos lá! Que dizes, João?
- Por mim, tudo bem!... – respondeu João bem-disposto.
Os três caminhavam lado a lado, sendo que o Gândara coxeava um pouco da perna esquerda. Ficara-lhe essa “recordação” dos tempos de guerra.  
[...]
A velha máquina de escrever Royal já tivera melhores dias. As teclas, de quando em vez, encavalitavam-se umas nas outras, o que o levava quase ao desespero. Sentado em frente de uma velha secretária de madeira, ouvia o “matraquear” das máquinas dos seus colegas de redacção. O artigo que lhe coubera em mãos era “Portugal - Um bom destino para reformados”.
- Então João, falta muito? Isso tem de estar pronto antes das 18 horas.
- Não se preocupe senhor Vasconcelos. Eu dou “conta do recado”!...
(continua)