Capítulo IV – “Com um
brilhozinho nos olhos”
Ouviu
o chiar do eléctrico que passava cá fora na rua. Espreguiçou-se e olhou o sol
que começava a entrar pela janela dentro. Sentiu passos na cozinha.
-
Bom, parece-me que está na hora de me levantar! – pensou. Ainda que fosse
domingo, não lhe apetecia ficar ali naquela madorna. Gostava de se levantar e
ir para a rua passear e conhecer a cidade. Havia ainda tanto para conhecer.
-
Então João, já acordaste? – o Álvaro já tinha ouvido o barulho das molas do velho
colchão que se fazia ouvir naquela pequena casa.
-
Bom dia Senhor Álvaro! Eu ainda a dormir e o senhor já levantado. Desculpe
lá!...
-
Não há problema. Hoje é domingo e sempre dá para dormirmos um pouco mais. Eu é
que já tenho esta rotina no corpo e, quer seja de semana ou feriado, acordo
“com as galinhas”! Já fui ao pão e já preparei o pequeno-almoço.
A
mesa estava posta com a cafeteira do café, um púcaro com leite, pão fresco,
manteiga e um naco de marmelada. As canecas estavam uma de cada lado da mesa.
Pequenos bancos de madeira em frente de cada lugar. A cozinha não era muito
grande mas dava perfeitamente para duas pessoas. Uma janela virada para o Tejo
era o ex-líbris daquela pequena casa
situada no Príncipe Real. Bom, não era propriamente uma casa, eram umas
“águas-furtadas” de um prédio. Dois quartos, uma pequena sala, a cozinha e uma
casa de banho, um pouco pequena, compunham as divisões. Mas só a vista era
tudo...
[...]
Do
lado da Misericórdia o eléctrico vinha em direcção ao Rato. Os dois caminhavam
junto ao miradouro de S. Pedro de Alcântara. Poucos transeuntes se viam na rua.
Apenas alguns idosos, uns cachorros que percorriam o jardim e o ardina, de
bolsa à tiracolo, que apregoava o Diário
de Notícias e A Bola. O domingo estava convidativo ao
passeio pela cidade.
-
João, estava a pensar irmos dar uma volta por Alfama – disse Álvaro enquanto
acendia um cigarro SG Gigante. – É
uma zona da cidade bem castiça e que de certeza vais gostar.
-
Claro que vou gostar! Conheço ainda tão pouco e, além disso, tenho curiosidade
em ver essa zona. Já ouvi falar tanto nela.
Desceram
pelo lado do Chiado. O Álvaro ia-lhe chamando a atenção para as igrejas, para a
Brasileira e para as casas de moda chique da cidade. Continuaram em direcção à
Rua da Conceição e depois subiram direito à Sé Velha. A intenção de Álvaro era
levá-lo ao Castelo de S. Jorge, donde se desfrutava uma magnífica vista sobre
Lisboa, sobre o Tejo e sobre Cacilhas do lado de lá do rio.
-
Depois de conheceres a cidade havemos de ir a Cacilhas comer uma caldeirada
“regada” com um bom tinto. Isso tem de ser – disse-lhe Álvaro.
-
Claro que havemos de ir! Apesar de eu não gostar lá muito de peixe... – respondeu
o João.
-
Comes outra coisa, não te apoquentes!...
A
caminhada foi-se alongando por becos, travessas, calçadas e escadinhas da velha
Alfama. Algumas velhas tascas ainda conservavam o ar de tempos idos. Com os
carapaus fritos no prato, os queijos alinhados e encimados por uma rede
mosquiteira, as sandes de torresmos e umas mesas com tampo de mármore já gasto
do tempo. Dois ou três velhotes a beberricarem e a jogarem dominó.
-
Eh lá Álvaro! – Ouviu-se uma voz por detrás dos dois.
Viraram-se
os dois e Álvaro “disparou” em direcção ao homem da voz que o chamara.
-
Ah grande Gândara! Estás mesmo bom? – abraçavam-se os dois enquanto, curioso,
João observava a cena.
-
Quem é esse aí? Não me digas que é teu filho?
-
Não. É um amigo da minha terra a quem eu ando a mostrar a cidade.
E,
voltando-se para João, apresentou-o:
-
João, este é o Gândara!
-
Muito gosto!
-
Igualmente rapaz!
-
Então, e tu como é que vão as coisas? – questionou Álvaro.
-
Olha, cá se vai andando e desandando conforme os dias. Uns dias trabalha-se
outros não.
Gândara
tinha sido seu “camarada de armas” em Angola. Tinham partilhado muito “mata” e
muita sede.
-
Olha, vamos aproveitar este encontro e almoçar numa tasca “catita” que eu
conheço. Que dizes?
-
Vamos lá! Que dizes, João?
-
Por mim, tudo bem!... – respondeu João bem-disposto.
Os
três caminhavam lado a lado, sendo que o Gândara coxeava um pouco da perna
esquerda. Ficara-lhe essa “recordação” dos tempos de guerra.
[...]
A
velha máquina de escrever Royal já
tivera melhores dias. As teclas, de quando em vez, encavalitavam-se umas nas
outras, o que o levava quase ao desespero. Sentado em frente de uma velha
secretária de madeira, ouvia o “matraquear” das máquinas dos seus colegas de
redacção. O artigo que lhe coubera em mãos era “Portugal - Um bom destino para
reformados”.
-
Então João, falta muito? Isso tem de estar pronto antes das 18 horas.
-
Não se preocupe senhor Vasconcelos. Eu dou “conta do recado”!...
(continua)