quinta-feira, 9 de junho de 2011

PONTE PARA O PASSADO - de Helena João

Chegada da sua viagem de dois anos ao Afeganistão, Isabel Gomes retoma o seu cargo de professora de Inglês na Escola Secundária Filipa de Vilhena.

Sempre gostara da cultura muçulmana, pelo que, logo após o seu divórcio, resolvera pedir uma licença sem vencimento e partir à aventura. Agora, passado esse tempo, sente-se uma mulher nova, disposta a ocupar o seu lugar no mundo ocidental.

Decide, então, organizar uma viagem a Londres com as suas turmas, nas férias da Páscoa. Sim, parece-lhe uma boa ideia.

Em Heathrow tudo cheira a novo. A imensidão do aeroporto é de tal ordem que parece que Londres inteira cabe ali. À saída, o céu, cinzento e demasiado baixo, relembra o que havia sido aprendido nos bancos da escola. O tempo é sempre mau, seja Abril, seja Julho, e o smog pesa nos ombros. Chegados ao centro, os seus olhos, com 12 anos e apenas as imagens do Porto gravadas na retina, sentem-se em casa. Não sabe se é o Thames que lhe recorda o Douro, se é o intenso barulho do trânsito, ou se é o cheiro dos escapes de centenas de carros a circular na via errada, mas sente-se em casa. Seguramente que viver ali todos os dias não será o mesmo que vaguear entre o Big Ben e as Houses of Parliament como turista. Mas de certeza que os pombos que residem à volta do Lord Nelson em Trafalgar Square comem o mesmo milho que os companheiros do Almeida Garret, nos Aliados. Hora do almoço e, tal como prometido, não há nada de jeito para comer. Assim, esta viagem oferece mais uma estreia. Afinal ainda não havia McDonald’s no Porto. Mal sabia ela que, uma semana depois, já estaria farta de hambúrgueres e, por incrível que pareça, de batatas fritas. À tarde é altura de visitar a London Tower e as jóias da Coroa. «Keep moving, keep moving», dizem aqueles britânicos emproados a um grupo de jovens que não teriam mais do que 6 anos. A coroa da rainha Vitória é gira, mas, no geral, todas aquelas jóias parecem mais imponentes na televisão. Já está farta de estar ali. Quando é que irá ver o Buckingham Palace? E os famosos guardas da rainha, de farda vermelha, chapéu preto e olhar distante? «Já é tarde, isso fica para amanhã», diz-lhe a professora de Inglês. Vão de metro para o hotel e àquela hora milhares de pessoas tiveram a mesma ideia. «Next station, Victoria Station. Mind the gap.» A voz - sempre da mesma senhora - e o sotaque permanecem no seu subconsciente até hoje.

Essa mesma voz desperta-a agora do estado semi-comatoso em que se encontra. Heathrow já não lhe cheira a novo. Em Londres já não se sente em casa. A multidão que, apressadamente, entra e sai do metro não lhe parece mais do que um conjunto de autómatos. Pessoas mecanizadas, emersas num dia-a-dia sempre igual, sempre vazio. Sabe-as indiferentes ao que as rodeia, almas perdidas sem fio condutor.

Ela era assim. Tal e qual. Embutida na sua própria existência sem sentido. Sente-se feliz por ter escapado. Por ter aberto os seus horizontes à verdade universal. Alá é Deus e só nas suas palavras encontra conforto e alento.

Deixa os alunos no hotel. Já é tarde para passeios, diz-lhes. Sai à procura de uma mesquita. Precisa de forças para o que há a fazer. Sabe que vai ser mal interpretada por todos no mundo ocidental, mas também sabe que faz isto por eles.

Está pronta. Dirige-se ao local combinado e recebe do irmão de fé o colete carregado com explosivos. Sem hesitar, segue para o London Eye. Sente-se enebriada pela multidão. Tanta gente, tantas vidas. Perdidas, todas elas, longe da verdade. Já falta pouco. Subitamente, mesmo em frente ao London Aquarium, avista um grupo de crianças em idade pré-escolar. Riem alto, ansiosas por entrar e começar a visita. O sentimento é-lhe familiar. Aquela garota de 12 anos, espírito selvagem e olhar atento, irrompe no seu pensamento e enche-a de dúvidas. Mas onde está ela agora? Em que momento se perdeu? Algures entre o finalizar do curso e o casamento apressado para calar pais conservadores, perdeu-se. Nunca tirou aquele ano para fazer voluntariado.

Nunca viajou pelo mundo como planeado. Possivelmente, também não é debaixo dos pés dela que corre a Westminster Bridge. A explosão ocorre assim que o seu corpo mergulha nas frias águas do Thames.