sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

REVISITANDO O PASSADO - de Célio Passos


Manuel Bernardo estacionou o automóvel junto ao empreendimento e saímos. Trata-se da construção de um centro comercial, mais um, de grandes dimensões, situado numa falésia. Lá no fundo, um rio de águas mansas percorre sem pressas o seu destino para o mar. Das casas a serem demolidas, encontra-se uma enorme moradia que se adivinha ter sido pertença de uma família abastada. A moradia, pintada de azul, talvez por ser do tempo da monarquia, já denota algumas falhas na pintura. É pertença desde há muito anos da família Mascarenhas, a qual Manuel Bernardo e o irmão receberam por herança. Recentemente a câmara expropriou-a para avançar com este empreendimento.

Um grupo de trabalhadores da empresa construtora dirigia-se em fila indiana, por entre os escombros de alguns prédios já derribados, concluindo mais um dia de trabalho. Um deles, talvez o responsável, ao ver Manuel Bernardo na sua direcção, destacou-se dos demais para responder a uma pergunta que presumiu que lhe ia ser feita.

Efectivamente, Manuel Bernardo perguntou-lhe quando pensavam deitar abaixo a velha moradia, ao que o responsável respondeu que seria na próxima semana o mais tardar. Que a moradia estava vazia e aberta e, caso quisesse dar uma vista de olhos – o responsável pressentiu certa nostalgia no interlocutor –, aconselhou-o, se entrasse, a ter cuidado com o pavimento, que em algumas partes ameaçava ruir. Manuel Bernardo agradeceu.

Eu sei, e tenho plena consciência de que, às vezes, não sou boa companhia. O recordar de velhos episódios, desagradáveis, que ele jamais gostaria que voltassem à sua mente não é desejável, mas são situações inevitáveis e difíceis de ultrapassar, mas quando lhe relembro os bons momentos, um sorriso ilumina aquele rosto já cansado da vida e os olhos adquirem um novo brilho.

Manuel Bernardo estava mesmo disposto a visitar a moradia. Decidido, dirigiu-se a ela e eu, obviamente, acompanhei-o.

Entrámos na casa e de imediato subimos ao primeiro andar. Um dos degraus, o quarto a contar do cimo da escada, continuava a ranger. Manuel Bernardo ouviu aquele som e parou. Desta vez esqueceu-se de o ultrapassar, sem o pisar, como tantas vezes o tinha feito no passado, horas tardias, para não acordar os familiares que dormiam.

Uma enorme sala que fora outrora a sala de jantar, ainda com alguns tectos com desenhos em gesso em alto-relevo, outros, já o tempo e a humidade se encarregara de os deitar abaixo. Era uma sala de grandes proporções e grandes acontecimentos ali se tinham passado.

Fiz Manuel Bernardo recuar uns bons anos.

«Era noite de consoada. A casa estava toda iluminada, mesmo nas salas que não tinham ninguém havia luz. O seu avô dizia que era um dia de luz e por isso queria tudo aceso. A casa estava cheia de gente. Ainda hoje penso como era possível meter tantos familiares naquela casa apesar de ser enorme. Os seus avós queriam que toda a família estivesse reunida naqueles dois dias, e o que achei sempre maravilhoso é que ele sempre conseguia. Os sete filhos que tiveram estavam todos vivos e apareciam sempre. A acrescentar com as noras e os genros e a prole gerada, podem calcular a quantidade de pessoas naqueles natais.

A criançada corria de um lado para o outro da casa. Os homens ou conversavam ou estorvavam o trabalho das mulheres, que se lamentavam da falta de consideração do titulado sexo forte para com o trabalho do sexo fraco, naquele tempo, de forma machista, demasiado evidenciado.

O avô Sebastião chamou a rebate o pessoal para a montagem do presépio, acontecimento considerado, por ele, um ponto alto do Natal.

Todos os anos o avô Sebastião, patriarca da família, nomeava um dos filhos e respectivos netos para a edificação daquilo, apesar da sua pouca religiosidade, que considerava o aspecto natalício com maior significado familiar.

Nesse ano foi a vez do tio Adalberto e dos filhos, os meus primos André e Zé Tó. O André não gostou muito de ter sido nomeado para esta tarefa, mas o Zé Tó, com os seus 6 inocentes anos, ficou entusiasmadíssimo. Todos nós, os primos, tínhamos a obrigação de os ajudar, eram estas as ordens do meu avô, e assumidamente acatadas.

Desembrulhar com o máximo cuidado os bonecos de barro que iriam ornamentar o presépio, ir levantar o musgo que de ano para ano se renovava no muro ao fundo do quintal e espalhar cuidadosamente sobre a estrutura de papelão e pano enrugado para dar os efeitos idealizados e, clandestinamente, roubar o espelho de prata da avó Mimi para fazer de lago onde um pescador lançaria a rede, tudo isto era delicioso.

Depois o distribuir os carneiros, o moleiro, a lavadeira, o carpinteiro, o ferreiro, os músicos, pintados de azul, empunhando os instrumentos de um amarelo de purpurina, a ponte, o moinho e outros adereços era da responsabilidade dos nomeados.

Nesse ano o tio Adalberto destinou um local estrategicamente escolhido para colocar a gruta da natividade, que por sinal, e contra o costume, teve o acordo geral. Mas o que se passou a seguir foi um momento inesquecível. O meu primo Zé Tó prontificou-se a colocar as personagens bíblicas na gruta e, para além de três Meninos Jesus, acrescentou cinco vacas e quatro burros e só não houve mais São Josés e Nossa Senhoras porque esses eram exemplares únicos, de presépios anteriores. Não houve quem demovesse o Zé Tó a restringir as personagens à sua expressão bíblica verdadeira, apesar das advertências da tia Natércia, inveterada beata, que o ameaçou de não lhe dar mais rebuçados e exigiu que o meu avô, que olhava embevecido para o neto e para aquela obra de arte, obrigasse o meu primo a repor a verdade histórica. Instigado pelo meu tio Adalberto a rectificar a situação, Zé Tó desatou numa convulsiva choradeira. Perante este facto, ninguém, nem a própria tia Natércia, teve coragem de exigir, muito menos mexer, em qualquer peça daquele memorável presépio. Como preito da vitória conseguida, Zé Tó foi colocar, triunfalmente, no topo da gruta a estrela de um amarelo vibrante da Anunciação.

Esse Natal de um longínquo ano, cuja data já não me recordo, foi um, senão, o mais belo Natal da minha existência. Na véspera do dia de Natal, nevou, e eu e os meus primos, ajudados pelos nossos pais, fomos para o jardim fazer bonecos de neve. Foi um dia, apesar da minha pouca idade, que não se apagou da minha memória. Ela concerteza confirma.

Mas uma fantasia criada pela minha tia Felisberta nessa noite de Consoada veio coroar ainda de uma maneira mais forte a minha meninice durante muitos anos. Já tínhamos comido o tradicional bacalhau com batatas e o polvo cozido, que o meu avô nunca dispensava, e entre risos e rabanadas, gargalhadas e aletria, a minha tia despertou, como só ela sabia, a curiosidade da miudagem quando disse que o Pai Natal estava a passar do outro lado do rio. Todos, sem excepção, corremos para as diversas varandas e janelas. Os mais miúdos, eu incluído, que obviamente nadas viam, perguntavámos onde estava o Pai Natal. Os mais velhos, corroborando com a brincadeira da minha tia, indicavam locais, os mais variados, onde o trenó, cheio de prendas, puxado pelas renas e transportando o Pai Natal vestido de vermelho, se encontrava. Ninguém teve o atrevimento, por razões óbvias, pela beleza daquela época, negar este facto. Eu não tive dúvidas que vi o Pai Natal percorrendo a estrada do outro lado do rio, cheia de neve e, quando chegou ao fim, o trenó levantou voo, passou por cima de umas casas e desapareceu em direcção à lua, muito linda, muito cheia. Que ele não ia para a lua, eu sabia, porque tinha que deixar o comboio eléctrico que eu pedi e isso veio a acontecer. Este indesmentível acontecimento acompanhou-me durante alguns anos e foi com uma grande frustração quando soube que o que tinha visto não tinha sido verdade mas sim uma ilusão, uma ‘doce ilusão’.»

Retomamos a visita da velha casa.

Acompanhei Manuel Bernardo na subida ao andar de cima. Um longo corredor ia de uma ponta a outra do andar. De um lado e de outro perfilavam-se vários aposentos, que eram bastantes. Mas Manuel Bernardo dirigiu-se a um com particular interesse. Era um salão de dimensões razoáveis. Num dos cantos do salão ainda morava uma lareira de pedra, ainda em bom estado, adivinhava-se numa das paredes, no papel adamascado carcomido pelo tempo, que ali estivera um quadro. Manuel Bernardo recordava-se dele, era uma cena de uma caçada; caçadores vestidos a preceito, cavalos bem albardados, uma matilha de cães pronta a trabalhar ao som de uma trombeta.

O salão estava vazio, no momento, mas estava repleto de recordações. Manuel Bernardo parou no meio do salão, olhou fixamente para um certo local e ajudei-o a recordar o velho sofá de veludo de cor azul-escuro da tia Felisberta. Fiz o tempo, de novo, recuar.

«Um cheiro, mistura, de aletria, creme queimado e de ovos batidos com açúcar chegavam aos nossos jovens narizes e disputavam a concorrência desenfreada das nossas papilas gustativas. Estes doces magistralmente fabricados pela Ti Felicidade, cozinheira da minha avó, eram servidos ao lanche e precediam, quase sempre, as histórias da minha tia Felisberta.

A tia Felisberta entrou com aquele ar de que a vida era feita de histórias infantis. Podia haver homens maus, bruxas ou bichos-papões, mas com ela tudo acabava bem. Era uma mulher feliz e fazia felizes os outros, mesmo que nada mais fizesse senão contar uma das suas inúmeras histórias.

A miudagem tinha-se espalhado pelas cadeiras, pelos sofás existentes e alguns sentaram-se no chão. Eu, o meu irmão e os meus primos preparávamo-nos para ouvir a tia Felisberta contar mais uma história. A escolha era sempre difícil. Depois de muita discussão, acabava, invariavelmente, por ser ela a decidir. Dessa vez ia contar a história da Bela Adormecida.

Sentada no sofá de veludo azul-escuro a tia começou a história, que não ficava só pelo texto, havia a teatralização. Ficávamos pregados no desenrolar dos acontecimentos, na cara da minha tia, que por sinal não devia nada à beleza, nas mãos em constantes movimentos, nos trejeitos dos olhos e dos esgares da boca, tudo nos cativava. Até que, na passagem em que a princesa tocava com a mão na roca, a tia Felisberta teatralizou o acto de adormecimento e adormeceu. Passou alguns momentos, e todos ficámos a aguardar que ela acordasse para continuar a história, mas a tia não dava sinais de acordar. O primo Raul, o mais impaciente, foi o primeiro a levantar-se e a abanar a tia. Nada aconteceu. Outros abanões se seguiram e nada de novo. A prima Beatriz, a mais velha dos presentes, viu que algo de anormal se estava a passar e foi chamar o pai. A primeira coisa que o meu tio Adolfo fez foi mandar-nos todos para o quarto azul, que ficava frente ao salão e disse que não saíssemos de lá sem ele dar ordem.

Sentimos que alguma coisa grave se passava. Ouvimos muita agitação pela casa, corridas, choros e lamentos, que nos provocaram uma grande ansiedade por não sabermos o que na realidade estava a ocorrer.

Todos calados e quietos e sem saber o que fazer, senão esperar por ordens, alguns, os mais velhos, começaram a conjecturar o que provavelmente se teria passado, quando o meu primo Artur, rapaz dos seus 5 anos, muito curioso e irrequieto, tomou uma decisão. Pegou numa cadeira e foi espreitar pelo buraco da fechadura. Não demorou muito a dizer-nos o que se estava a passar. Voltou-se para nós e num ar decidido disse que o caso estava resolvido; o príncipe encantado já tinha chegado e que a tia Felisberta ia acordar. Só não percebia porque é que o príncipe, que costumava vestir-se de azul com coisas amarelas, vinha vestido todo de branco. Alguns de nós batemos palmas e outros adivinharam o que realmente se tinha passado.

A tia Felisberta nunca mais nos contou histórias, fez muita falta, mas foi nos dito que ela estava a contar histórias a outros meninos, num sítio muito bonito e isso tranquilizou os mais novos.»

Manuel Bernardo hesitou, mas eu sabia que era um local que ele queria deixar de visitar. Puxei-o pelas escadas acima, umas escadas estreitas, esburacadas pelo tempo cujos degraus ameaçavam ruir, avançámos com todas as cautelas.

Aquelas águas-furtadas traziam-lhe muitas recordações, algumas boas, outras dolorosas, eu sei, mas também sei que mesmo assim era um local que não deixaria de o sentir, fazia parte do seu mundo interior, pessoal, que só a ele lhe dizia respeito. Fora ali que começou o despertar a sua sexualidade, as dúvidas de uma puberdade muito desacompanhada e por vezes incompreendida, como era muito usual naqueles tempos.

Olhou por uma estreita janela que dava vista para um terraço interior. Fora sempre para ele um local estranho, misterioso, nunca tinha estado lá, nunca lho permitiram. Era reserva do tio-avô Avelino, local inexpugnável, interdito, sempre pensou que lá se passavam fenómenos estranhos. O tio-avô Avelino, irmão do avô Sebastião, era um indivíduo bastante bizarro: esquálido, longilíneo, parecia um personagem saído de um quadro de Elo Greco. Aboletou-se na casa do meu avô, porque a sua pequena reforma, conseguida como sargento do exército, passado à reserva, era insuficiente. Todos nós pensávamos que o meu avô o considerava um herói por ter combatido na I Guerra Mundial, ou teria pena do irmão e como tal suportava aquela situação.

Passava a vida entre esse terraço ajardinado que existia nas traseiras da casa e onde recebia quase diariamente o ex-regedor da freguesia, o Sr. Afonso Guerra, destituído do cargo por razões políticas e com o qual, segundo se dizia, conspiravam contra o governo, e um quarto situado no sótão, onde também ninguém entrava, com excepção do meu avô e onde, para além de ler livros de cariz político, escutava numa telefonia de marca Blaupunkt a Rádio Moscovo. Por vezes enquanto esperava por estas emissões clandestinas, entretinha-se com uma espingarda de pressão de ar, a atirar aos ratos que desprevenidamente apareciam lá pelo sótão.

Um dia a polícia política veio à sua procura, creio que por engano, mas mesmo assim, a partir dessa data, a consideração no seio da família subiu consideravelmente.

Certa Páscoa, o meu avô pediu-lhe para falar ao K, um pobre diabo que fazia uns biscates lá para casa, e que devia a alcunha ao facto de um joelho, resultante de um ataque de reumatismo, ter ficado junto ao outro de modo que as pernas formavam a dita letra, para embebedar um peru. Este pedido, irrecusável, porque vinha de quem vinha, o tio Avelino teve que interromper naquele dia os afazeres, o que lhe desagradou. Convocado para comparecer no dia seguinte lá em casa, o K solicitou, de modo humilde, ao tio Avelino a informação, já que era um serviço que nunca tinha feito, qual o processo a utilizar para embebedar a referida ave de capoeira. O tio Avelino aproveitou para descarregar a sua raiva contida no pobre K dizendo-lhe que o processo era extremamente simples. Ele devia beber um gole de aguardente da garrafa, colocada ao seu dispor, depois abria o bico da ave e soprava-lhe o ar impregnado de álcool etílico pela goela do bicho, só o ar, nunca o líquido. Isto devia ser repetido tantas vezes até que o peru já não conseguisse levantar-se. O K meteu mãos à obra; gole de aguardente, abre o bico, sopra pela goela do peru, novo gole, nova sopradela, novo gole e nova sopradela. E de sopradela em sopradela o K adormeceu com a garrafa de aguardente vazia na mão e o peru a espanejar-se cheio de vida alheio àquele estranho ritual.

A Ti Felicidade teve de tratar da «saúde» do peru e o tio Avelino justificou-se perante o irmão com a incompetência do K, que tão cedo não apareceu lá por casa.

Esta era a vida insólita do tio Avelino.

Curioso é que de um momento para outro deixámos de ver e ouvir esta estranha personagem. Disse ao meu avô que ia regressar às linhas da frente, porque não podia deixar os camaradas sós. O meu avô não acreditou nas palavras do irmão, mas a verdade é que deixou a casa num dia de manhã cedo, sem ninguém dar por ele, e nunca mais ninguém soube dele, nem a polícia, à qual o meu avô participou o acontecimento. Talvez, como D. Sebastião, nos apareça numa manhã de nevoeiro.

Aquelas águas-furtadas eram a escapadela do mundo que ele tinha por vezes dificuldade em compreender, mas também era um mundo para a sua imaginação que tinha como limite o céu que observava daquelas águas-furtadas à espera de respostas.

Manuel Bernardo gostava de abrir a janela de tipo alçapão e esgueirar-se para o telhado como um gato, o mundo visto dali era diferente, talvez mais real, mais puro. Dali avistava-se a casa do coronel Figueiredo, onde se juntavam, para grandes festins, as pessoas mais importantes, por metro quadrado, existentes no bairro. Os avós eram visitas frequentes. A casa da modista da menina Ludovina, que se vislumbrava mais à esquerda, onde as clientes não suspeitando de olhares indiscretos dos vizinhos, despiam e vestiam, entre cetins, organdis e veludos, os vestidos em prova que a modista entre chá e bolinhos disfarçava as falhas da costura ou os excessos adiposos das clientes. Situada à direita era a casa do engenheiro Lopes de Abreu, cuja filha, a Nini, era o alvo do seu secreto amor. Deu por ela, num entardecer de um certo domingo, no «picadeiro» da cidade, local essencialmente restrito a uma ou duas ruas que desembocavam numa arborizada avenida central, cheia de tílias, hoje transformada num parque de estacionamento, que nos dias quentes de Primavera e Verão exalavam um perfume e que propiciavam momentos bastante agradáveis entre as famílias e os mais novos a arranjarem os seus primeiros namoricos.

A partir dessa altura, à noite, através do nylon dos cortinados do seu quarto, Manuel Bernardo, sempre que se proporcionava, perscrutava os movimentos intimistas de Nini; o pentear do seu longo cabelo, frente ao espelho do pechiché, o despir do robe de cetim, o descalçar dos chinelos de quarto, o deitar na cama de lençóis brancos de linho, o doce pegar do livro para, já deitada na cama, comodamente, ler algumas páginas. Nessa atitude de voyeur, Manuel Bernardo só abandonava o telhado, repleto de felicidade daquele amor platónico, quando Nini fechava a luz.

Este romance à distância sem conhecimento de uma das partes teve sucesso quando foi convidado para a festa de anos do Henrique, irmão do seu idílico amor. Aperaltou-se a preceito, e, enquanto rapava os fugazes pêlos de barba que lhe povoavam a face, pôs a rodar no gira-discos a canção Love Story, do filme Romeu e Julieta, pela orquestra de Henry Mancini, para criar na sua cabeça um ambiente romântico, exagerou no Pitralon, o after-shave que o pai utilizava, e abalou para a festa.

O primeiro encontro deu-se: formal, emocionante, inesquecível. Foi ela que lhe veio abrir a porta, o coração pulsou forte, ficou mesmo com uma dor no peito, não disse nada, nem mesmo boa tarde, estava confuso; maravilhosa confusão. Logo atrás apareceu o aniversariante, que os ajudou naquele momento embaraçoso. Henrique apresentou-lhe formalmente a irmã, Maria Leonor, Nini, para a família e amigos. Esta mostrou-se pouco à vontade na presença de Manuel Bernardo, mas disfarçou, recorrendo a um belo sorriso. Durante a festa trocaram olhares cúmplices, mas a coragem faltou para um deles tomar iniciativa de uma aproximação mais intimista.

Encontros nada ocasionais foram acontecendo, de parte a parte, até que um dia numa visita de estudo proporcionou-se uma conversa mais prolongada e ele teve a coragem, ou melhor, a ousadia, para a convidar a lanchar no dia seguinte numa pastelaria dos dois bem conhecida. Nini disse que não sabia se poderia ir, porque os pais queriam que ela fosse logo para casa depois do liceu e que também tinha muito que estudar. Ficou esperançado e no dia seguinte, sem ter a certeza que ela aparecesse, foi para a pastelaria à hora combinada. Ela apareceu, mas acompanhada de uma amiga. «De mal o menos», pensou.

Os encontros foram-se dando até que um dia, encheu-se de coragem e foi falar aos pais da Nini para pedir autorização para namorar com a filha, o que foi aceite, e até permitiram que ele fosse até lá casa, e nos degraus das escadas, à saída da porta, entre as oito e meia e as nove e meia da noite, poderiam namorar. Tudo isto, era vigiado da janela do primeiro andar pela tia Gertrudes, inveterada solteirona, uma velha de óculos de aros de tartaruga, de lentes grossíssimas que parecia um mocho, armada de «pau-de-cabeleira». Mas Nini levava este namoro a sério, prova disto foi a mudança do relógio do pulso esquerdo para o direito, na época sinal de comprometimento e nas cartas que trocavam, via criadas de sala, como eram conhecidas na época, dos avós dele e dos pais de Nini, que achavam piada e deleitavam-se com o namoro. As cartas eram codificadas, código bastante simples, trocavam umas letras por outras, não só para serem alvos da concupiscência das empregadas mas também era uma forma de dizerem coisas que na escrita normal não tinham coragem.

Manuel Bernardo subiu na consideração dos amigos e colegas de liceu porque a Nini era a sua «miúda», alvo de inveja de muitos. Do lado da Nini as amigas e colegas de turma, no mesmo grau de inveja, desprestigiavam-no cognominando-me de teddy-boy.

As coisas tiveram o seu curso normal e que se foi arrastando ao longo dos tempos, como deveria ser, assim diziam os mais velhos, e, um belo dia, acabados de formar, ele, em Medicina e já a trabalhar no hospital e, ela, em Letras, e a dar aulas no liceu, e depois de ter conseguido fugir à tropa alegando um motivo de «pés chatos» acompanhado de uma quantia em dinheiro que nunca soube quanto, e que o pai desembolsou para um sargento do exército, casaram. Ele e a Nini viviam felicíssimos.

Diz a voz popular que «a felicidade não existe, só existem momentos felizes», e por vezes estes são muito breves. Manuel Bernardo teve a experiência disso.

Recuemos por breves momentos àquele fim de tarde.

«Manuel Bernardo aguardava com certa ansiedade o regresso da mulher e do filho que tinham ido ao pediatra por causa de um pequeno problema de saúde de Jorge. Já era a terceira vez que ia à varanda ver se avistava o Morris Mini da esposa. O sol desaparecia lentamente no horizonte, as sombras desenhavam estranhas formas nos prédios próximos. As andorinhas não paravam de voar e de chilrear. Um carro da polícia apareceu no cimo da rua e estacionou junto ao prédio. Dois polícias saíram do veículo e tocaram na campainha do prédio. Manuel Bernardo foi ele mesmo atender, suspeitando desta estranha visita.

‘– Sr. Dr. Manuel Bernardo? – perguntou um dos polícias.

– Sim.

– É para lhe comunicar que a sua mulher e o seu filho tiveram um acidente grave e encontram-se hospitalizados. Estamos aqui para o levar de imediato ao hospital.’

Manuel Bernardo não hesitou, entrou de imediato no carro. Fez algumas perguntas sobre o estado da mulher e do filho, mas os polícias foram evasivos, por conveniência ou por ignorância.

Quando chegou ao hospital, aguardavam-no dois colegas que o levaram para uma sala e deram-lhe um sedativo. Manuel Bernardo adivinhou na cara dos colegas o que se tinha passado não foram preciso muitas palavras.

Foi tudo muito simples, rápido e inesperado. Numa curva, um carro fora de mão, a alta velocidade, foi embater de frente com o da Nini. O embate foi violento e nenhum dos ocupantes de ambos os veículos resistiram. Recordo-me perfeitamente desse dia trágico nos ínfimos pormenores.

Manuel Bernardo entrou numa enorme depressão que preocupou toda a família. Até que um dia, inesperadamente, aceita um convite de um hospital na África do Sul e abandona tudo e todos, virando uma página da sua vida, abalou para o hemisfério sul, onde recomeçou uma nova vida, profissional e familiar. Nunca mais voltou, mesmo nos acontecimentos mais marcantes, como foram as mortes dos seus familiares. Já lá vão trinta anos.»

Preparávamo-nos para abandonar a casa, quando Manuel Bernardo reparou, entre um monte de destroços acumulados a um canto, peças de madeira que outrora tiveram a sua utilidade, caixilhos de portas e janelas arrancados e um outro sem nome de coisas sem utilidade objectiva, numa pequena mala de cartão, com os cantos reforçados com peças metálicas e pejada de autocolantes de anúncios de hotéis europeus, como era costume no tempo dos seus pais. Desencalhou-a debaixo dos destroços e abriu-a. Tinha única e exclusivamente fotografias, não muitas.

Sentámo-nos no último degrau da escada que dava para o andar superior, e começámos a vê-las, uma a uma. Eram fotografias, retratos da família Albuquerque no seu melhor esplendor. Uma fotografia era de família com os avós, e toda descendência Albuquerque, os pais, os tios e toda a miudagem, pelo menos a maioria, onde se incluía o Manuel Bernardo, talvez o mais novo da geração. Outros retratos se seguiram, do casamento do tio Adolfo com a esposa, com um vestido de noiva de gosto muito duvidoso, ladeados pelos padrinhos. Mais umas fotografias, uma de um piquenique na praia de Espinho e outro na praia da Figueira da Foz, com os familiares do sexo masculino em fato de banho de duas peças e as do sexo feminino, ou vestidas com roupas compridas debaixo de umas sombrinhas ou de fato de banho quase tão compridos como os vestidos das companheiras. Fotografias de uma viagem ao longínquo Algarve, na altura ainda pouco cosmopolita, e uma foto, esta muito especial.

A fisionomia de Manuel Bernardo alterou-se. A fotografia que tinha entre mãos nunca a tinha visto, mas dizia-lhe respeito. Era da Nini com o filho Jorge nos braços. Quão bela era a sua mulher e o seu filho. Era para lhe ser oferecida no dia do trágico acidente a data no verso assim o dizia. Olhou para ela durante bastante tempo sem saber exactamente o que fazer, este aparecimento inopinado surpreendeu-o. A sua vida agora era outra bem diferente muito longe daquele local. Questionava-se interiormente para quê atormentar-se com acontecimentos tão penosos tão distantes no tempo. Não deixei que ele deixasse de pensar naquela fotografia. Fazia-lhe com que as imagens ocorressem na sua mente. Sucessões de imagens, locais, pessoas, acontecimentos, sensações e emoções.

Manuel Bernardo ia sorrateiramente abandonar o local. Peguei-lhe novamente nas emoções, o facto de ter visto aquelas fotografias, em especial a última, não podia ficar indiferente. Fiz a imagem permanecer na sua mente. Fi-lo reflectir. Recordei-lhe que o passado faz parte do presente e do nosso futuro, nos cantos mais recônditos da memória ele sobreviverá. Disse-lhe que não se esquecesse que ela, a memória, envelhece, e não o podia ajudar, se mais tarde quisesse recordar acontecimentos que tentava naquele momento esquecer. Aconselhei-o a levar as fotografias e a guardá-las, não só na memória, enquanto possível, mas essencialmente no seu coração.

Manuel Bernardo jogou todas as fotos na mala e fechou-a. Sorriu. Gostei tanto do seu sorriso que o gravei para memória futura.

Voltámos para o automóvel, olhou mais uma vez para a casa, vi-o de novo a sorrir e a chorar ao mesmo tempo e arrancámos para uma vida que lá longe esperava por nós.