segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Regresso de António Alvarez



Abrigado num beco escuro e malcheiroso, sentia o frio enregelar-lhe o corpo. Até um cão se lhe juntara aos pés.

Tudo lhe parecia estranho à sua volta. Outros como ele encontravam-se por ali embrulhados em cobertores e com caixotes de papelão a fazerem de «quarto».

Não se lembrava como chegara até ali. Vagamente recordava uma discussão que tivera no emprego com o seu chefe. Depois tudo se passara muito rapidamente.

A discussão em casa com a mulher e o olhar «triste» dos filhos. Simplesmente abalara «porta fora» e andara sem parar pela cidade. Chorara de raiva pela situação e por tudo o que iria perder: a família, os amigos e o aconchego do lar.

Por mais que pensasse, tudo lhe parecia algo surrealista. Ele considerava-se um homem calmo e de bons costumes. Sempre cumprira com todas as suas obrigações, quer como marido, quer como pai, e sem nada a apontar como trabalhador.

Ainda há uns dias tinha tido uma conversa com o Zé Maria, amigo de infância, acerca da sua experiência de vida. Tinha vindo da «santa terrinha» para a capital para trabalhar na mercearia do «padrinho». Subira a vida a pulso e até conseguira estudar de noite e tirar o Curso Comercial na Veiga Beirão.

– Pois é como te digo Zé Maria, a vida para mim não foi fácil, mas consegui!

As imagens da aldeia, enquanto criança, surgiam-lhe, agora, com uma nitidez como se tivessem ocorrido ainda ontem. A família toda reunida à volta da lareira contando histórias de «lobisomens», de «mouras encantadas» e até de «almas penadas». Naquelas noites de Inverno, em que a neve caía lá fora, comiam-se castanhas e desfilavam-se histórias de gerações passadas.

Lembrava-se da cara do avô quando o chamava para ir com ele tratar das ovelhas e das cabras. Uma cara de alegria estampada num corpo já tolhido dos frios de invernos passados. Da avó lembrava-se do pão quentinho a sair do forno.

«– Que bom aquele cheirinho!…»

«Fincava» agora o olhar no rapaz que colocava os últimos enfeites no candeeiro do outro lado da rua… que lhe importava isso… ia ser «Natal» mas não para ele. Puxou mais para cima o cobertor a tentar cobrir as orelhas… a borra do cigarro tombara no chão… soprou-a para longe não fossem as «parcas» vestes queimarem-se.

Passavam as pessoas com os sacos cheios de embrulhos e caras risonhas, miúdos pela mão com balões a dizerem «FELIZ NATAL».

Achou que já eram «horas» de se levantar. Devagar embrulhou os cobertores em forma de «trouxa» e abalou rua fora, em passo de quem a vida já nada lhe pode dar.

Entrou num café e as pessoas abriram-lhe espaço no balcão…

– Não tenham medo que eu não mordo! – ninguém lhe respondeu ou fez algum comentário, só o empregado perguntou com cara de «poucos amigos»:

– O que é que quer?

Meteu a mão no bolso a remexer nas moedas que tinha e respondeu:

– Um copo de leite e – olhou para a vitrina dos bolos – aquela bola-de-Berlim que está ali a rir-se para mim.

– Sabem que dia é hoje? – questionou em voz alta a «assistência». Mais uma vez o silêncio foi a resposta.

– Eu digo-vos: hoje é véspera de Natal! – alguns dos presentes, «incomodados», começaram a sair. – E eu vou ter com «ele» – apontava para a televisão que apresentava na altura um «Pai-Natal» a distribuir brinquedos aos miúdos. – Também eu já fui assim como aqueles putos. Parece impossível, não é?

– Ó amigo vamos lá a despachar que as pessoas não querem saber aquilo que você foi ou deixou de ser – disse-lhe o empregado.

– Ok, eu vou-me já embora, não se preocupe.

Tirou algumas moedas e pô-las em cima do balcão.

– O resto é gorjeta.

Saiu «porta fora» e pensou:

«– Vou ver o rio.»

Os cacilheiros «derramavam» sobre o cais muito pouca gente, ao contrário do que era habitual. Do Cais das Colunas olhava o rio, as gaivotas, Cacilhas lá do outro lado…

«– Está na hora» – pensou. Caminhou em direcção ao Cais do Sodré, sempre «rentinho» ao rio e, falando baixinho:

«– Senhor, eu sei que nem sempre fui ‘boa peça’, mas já não consigo aguentar mais.»

Comprou um bilhete para Cascais e dirigiu-se para a linha correspondente. Avançou até ao fundo do cais. Ali o comboio ainda viria com a «velocidade» certa.

Acordou estremunhado. Estava deitado numa cama. Pareceu-lhe ouvir vozes conhecidas.

Levantou-se, abriu a porta num repente e gritou:

– Feliz Natal!

As caras da mulher e dos filhos apareceram «espantadas» à porta do corredor…