segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Génese

Era o local mais secreto do planeta.
Um feixe de luz imenso emergia do centro da sala de controlo. Era uma espécie de broca luminosa, de um branco gélido e rodopiante. Atravessava vários andares inferiores e ali irrompia imponente, projectando-se numa enorme cúpula cristalina. Para o exterior estendiam-se dezenas de pequenos braços de luz, que se perdiam na atmosfera recolhendo toda a energia necessária.
Naquela sala, naquele momento, viviam-se minutos terríveis de pânico e apreensão.
– Rápido, precisamos de toda a energia possível. Ainda não temos pressão suficiente. Quero toda a gente concentrada no que está a fazer, olhos nos monitores. Não se preocupem, vai tudo correr bem.
– Dr. Zorki, estamos a absorver demasiada energia, tenho todos os indicadores no vermelho, os cristais da cúpula podem fragmentar.
– Temos que continuar, Purski – respondeu o Dr. com os olhos pregados nos dados do computador. – É a nossa única hipótese, ainda não temos potência suficiente para sairmos daqui. Dêem-me o tempo exacto para o impacto.
- Temos quinze minutos.
– Informa todas as secções. Contagem decrescente em dez minutos. Eu vou ao laboratório enviar a “encomenda”.
A “encomenda” era um projecto altamente secreto, desenvolvido em tempo recorde pelo Dr. Zorki, com a colaboração do seu assistente Purski, e pelas Dr.as Merchii e Phandora.
– Dr.ª Merchii, está tudo preparado? O tempo escasseia.
– Ia agora mesmo chamá-lo, Dr. Zorki. Temos aqui um problema. Está tudo pronto para o envio, mas estive agora a rever os últimos dados e a informação que tenho é que existe uma anomalia nos cérebros.
– Anomalia nos cérebros? – interrogou-se Zorki cravando um olhar ansioso nos dados do monitor. – Como é isto possível? Estava tudo perfeito.
– É realmente incompreensível – respondeu Merchii apontando no monitor uma série de informações. – A verdade é que, segundo estes números, os cérebros irão funcionar apenas parcialmente, embora com algumas possibilidades de desenvolvimento.
– Continuo a não perceber o que aconteceu… – balbuciava o doutor, com a cabeça enterrada nas mãos. – Mas não temos tempo para correcções. Vamos…ah…vamos enviá-los mesmo assim.
– Mas Dr. Zorki, é a continuidade da nossa espécie que está em causa…
– É a nossa única hipótese, vamos enviar, não temos tempo para mais nada.
Ao fundo da sala, em frente a outro monitor, Phandora esboçava um furtivo sorriso vitorioso.
– Dr.ª Merchii – perguntou Zorki impaciente. – Os restantes dados fisiológicos estão correctos?
– Estão. Com excepção do cérebro, todos os sinais estão estáveis.
– E os valores da cápsula criogénica? – perguntou ele, correndo para junto da Dr.ª Phandora.
– Todos os valores correctos – respondeu Phandora.
– Óptimo. Preparar para envio em dez segundos. Dr.ª Merchii, faça a contagem.
– Dez, nove, oito..., zero, enter.
Precipitaram-se numa correria até uma pequena vigia de controlo. Por momentos ficaram extasiadamente imóveis, observando emocionados a pequena cápsula que se afastava lentamente, deslizando suavemente na atmosfera como uma pequena nuvem.
– Vai ser uma longa viagem – suspirou Zorki. – Deus vos acompanhe.
Os seus pensamentos foram subitamente interrompidos. O seu assistente Purski entrava no laboratório a correr.
– Dr. Zorki – gritou com o semblante visivelmente alarmado. – Não podemos esperar mais. Temos que partir já.
– Já temos toda a energia necessária? – perguntou ansioso.
– Não, mas não temos tempo para absorver mais.
– Ok, vamos tentar mesmo assim. Faz a comunicação, vamos partir de imediato.
Em alguns segundos a enorme nave sacudiu e começou a elevar-se devagar. Libertava-se do solo que a tinha mantido secreta durante tantos anos. Tinha uma altura de cinquenta andares e deixava para trás um buraco do tamanho de uma cidade média.
Na sala de controlo reinava o silêncio. Estavam todos muito apreensivos. A nave continuava a deslocar-se muito lentamente.
De repente, o alarme. A nave sacudia violentamente e sem controlo. A enorme cúpula de abastecimento de energia estilhaçou, deixando entrar uma espécie de vento ciclónico devastador. Entre gritos e berros desesperados, tudo foi sendo destruído e arrancado do seu lugar num enorme turbilhão. A força centrífuga era enorme, projectando a quilómetros milhares de fragmentos. Era uma onda mortífera e avassaladora que tudo varria num enorme turbilhão.
Em segundos tudo estava terminado. Destruição total.

xxx

Os enormes painéis espelhados que revestiam todos os edifícios reflectiam a generosidade de mais um belo dia de sol naquela cidade. As construções alinhadas ao longo de uma simetria irrepreensível distribuíam-se uniformemente em cada um dos lados das amplas e arborizadas avenidas, numa conjugação de grande efeito estético e de plena harmonia. Tudo era calmo, quase matematicamente tranquilo. Era uma cidade pequena, a mais moderna de toda a colónia. Fora projectada essencialmente para ser um centro de pesquisa e governação de uma sociedade muito evoluída e superiormente inteligente. No centro, imponente, um enorme edifício cilíndrico impunha-se austero. Era o centro de comando de toda a colónia.
Naquela manhã Zorki levantou-se mais cedo que o habitual. Um súbito sinal sonoro tinha-lhe interrompido o sono.
Uma mensagem? A esta hora?, interrogou-se, ainda meio atordoado, de quem será?
Carregou num botão de comando, e a mensagem apareceu de imediato numa espécie de painel de vidro colocado no fundo do seu quarto.
Ficou incrédulo.
Uma mensagem do centro de comando?, pensou apreensivo, O Grande Vortwon quer falar comigo… com urgência?! Tenho que me despachar.
Zorki preparou-se rapidamente, e entrou apressado no elevador.
– Garagem – disse ele.
A sua cabeça cogitava dezenas de interrogações, mas não fazia ideia qual o assunto urgente, pelo qual tinha sido chamado pelo Grande Vortwon.
Chegou à garagem e entrou num pequeno e estranho veículo. Tinha rodas estreitas e parecia feito de plástico. Era um material novo, leve mas muito resistente e completamente reciclável, desenvolvido por cientistas daquela cidade. No tejadilho possuía um painel vidrado que lhe fornecia toda a energia necessária para se movimentar. Era silencioso e não poluente. Todos os veículos que circulavam na cidade utilizavam aquela tecnologia.
Zorki introduziu o código das coordenadas do centro de comando, e o veículo arrancou de imediato.
Graças a um complexo programa de controlo por satélite, os veículos circulavam sem ser necessário conduzi-los. Todos tinham as suas coordenadas de destino inseridas, e o computador geria o tráfego em função desses valores. Era um sistema completamente seguro. Em caso de qualquer anomalia, a energia era cortada automaticamente e activava-se um campo de forças electromagnéticas que imobilizava de imediato todos os veículos.
Zorki chegou ao centro de comando.
– Bom dia, sou o Dr. Zorki – cumprimentou ele a recepcionista. – Fui chamado para vir cá…
– Sim, o Grande Vortwon aguarda-o. Coloque aqui o pulso para validar a sua identificação – disse ela apontando o scanner.
Todos os habitantes da colónia possuíam um chip inserido no pulso, que era colocado à nascença e que os acompanhava a vida toda. A memória do chip armazenava toda a informação referente a cada indivíduo, todos os dados pessoais, acessos, cadastros, licenças, pagamentos. Não existia moeda e não havia pagamentos de impostos directos. No preço de cada produto adquirido estava incluída uma percentagem que se destinava às contribuições para a colónia.
– Está tudo certo – disse a recepcionista, sob o olhar atento de dois seguranças. – Pode subir Dr. Zorki.
Zorki subiu três andares no elevador, acompanhado de um segurança. Percorreram um longo corredor cilíndrico muito branco, completamente despojado, e pararam junto a uma enorme porta blindada. O segurança falou para um pequeno monitor.
– Grande Vortwon, está aqui o Dr. Zorki.
– Pode entrar – ouviu-se uma forte e autoritária voz.
Com um suspiro pneumático, a porta abriu-se e Zorki entrou.
– Entre, entre, doutor – ordenou o Grande Vortwon –, sente-se aqui.
Zorki acomodou-se hesitante, numa espécie de cadeira insuflável sem pés nem qualquer base de apoio.
– Estou a ver que as experiências sobre o controlo da gravidade já estão a ter alguma aplicação prática – disse Zorki, timidamente.
– Não tenha medo que não deve cair – disse Vortwon esboçando um sorriso fugaz. – Ainda estão em estudo. Mas não foi para falar de cadeiras que o chamei cá.
– Calculo que não, confesso que estou um pouco apreensivo – respondeu Zorki, enquanto se tentava equilibrar na cadeira.
– O assunto é grave, muito grave, podemos até falar no extermínio eminente da nossa sociedade, mas vou chamar a Dr.ª Phandora para participar na nossa reunião.
– Ela também está cá?
– Não, ela está a trabalhar num projecto na nave, mas vai juntar-se a nós através de holograma.
E, de repente, surgiram no meio da sala os contornos tridimensionais da Dr.ª Phandora.
– Bom dia, Grande Vortwon, bom dia, Dr. Zorki.
– Bom dia, doutora. Vocês já se conhecem sobejamente, e eu vou directo ao assunto. De acordo com as informações que eu tenho, vocês são os mais prestigiados cientistas da nossa colónia em matéria de engenharia molecular. Graças aos avanços da nanotecnologia, a nossa sociedade é hoje muito mais desenvolvida e saudável. No entanto, apesar da nossa esperança de vida actualmente ser estimada em cento e cinquenta anos, corremos o sério risco de não vivermos nem mais um.
– Mas qual é o problema? – perguntou Zorki, visivelmente chocado.
– Deixem-me continuar – disse Vortwon, colocando solenemente as duas mãos em cima da mesa. Os nossos conhecimentos de manipulação da matéria átomo por átomo levaram-nos a construir máquinas fantásticas, máquinas superminúsculas, computadores do tamanho de uma célula, processadores pequenos e ultrarápidos e variados dispositivos que ajudam a controlar a nossa saúde. As microssondas para testes sanguíneos e os nanodispositivos de recuperação celular são disso um bom exemplo.
– Se me permite – interveio Phandora –, a esse nível desenvolvemos também pequenas máquinas que circulam na corrente sanguínea, e que se destinam a corrigir doenças genéticas, alterando o DNA de cada célula…
– Sim, – interrompeu Vortwon –, o problema está exactamente nessas pequenas máquinas. Sabíamos que esta ciência do muito pequeno tinha alguns riscos. A nanotecnologia, manipulada por mãos criminosas, poderia ser fatal para a nossa sociedade.
– Mas todos os cientistas têm um código de honra e ética que cumprem escrupulosamente no desenvolvimento dos seus projectos – disse Zorki com segurança na voz. – São projectos profícuos que se destinam essencialmente ao desenvolvimento e bem estar da nossa sociedade.
– Eu sei o que se passa na nossa colónia – continuou Vortwon –, mas não conseguimos controlar os projectos das outras colónias do planeta. Os cientistas da colónia Zedi foram demasiado ambiciosos. Queriam desenvolver um exército mais sólido, invadiram o corpo dos soldados com pequenas máquinas celulares para os tornar mais fortes e resistentes. Um autêntico nanoexército.
– Mas isso é uma grande imprudência – exclamou Zorki, alarmado. – O excesso de células manipuladas pode levar a…
– A um descontrolo completo – completou Vortwon. – Foi precisamente isso que aconteceu. Um risco que nós conhecíamos. As próprias máquinas reproduzem-se. Os soldados transformaram-se em autênticas máquinas de guerra, e para eles todos são o inimigo.
– Mas, não os podemos atacar? – perguntou Phandora. – Todas as colónias do planeta têm os seus exércitos.
– Tarde demais – disse Vortwon baixando a cabeça. – Eles têm uma arma poderosíssima que já foi activada.
– Uma arma? Mas que arma? – perguntou Zorki, pondo-se de pé.
– É uma bomba de grande efeito devastador – respondeu Vortwon.
– Mas devastador até que ponto? – perguntou Phandora, entre algumas interferências na transmissão.
Vortwon fez uma longa pausa, observando uma fotografia da sua família que estava em cima da sua secretária.
– Devastador ao ponto de…- hesitava ele com a voz embargada – ao ponto de eliminar toda a população do planeta.
Um silêncio aterrador e circunspecto interrompeu a conversa naquela sala.
– Mas não há hipótese de neutralizar essa bomba? – perguntou Zorki com ingenuidade. – Não a podemos destruir?
– Não, está escondida no subsolo, protegida com um escudo protector, nenhuma das nossas armas lhe causaria qualquer dano. A bomba está neste momento num processo de armazenamento de energia. Quando atingir o seu nível máximo será libertada, varrendo o nosso planeta de uma ponta à outra.
– Como é que tem tanta informação sobre essa bomba? – perguntou Phandora.
– Porque nós também tem… – calou-se de repente Vortwon atrapalhado.
– Ia dizer… – insistiu Zorki – que temos,…por favor, não nos esconda nada.
– Pronto, está bem – acedeu um pouco embaraçado. – Nós próprios também temos uma bomba secreta desse tipo. Foi uma espécie de acordo feito entre todas as colónias. Todas desenvolveriam a sua própria bomba, de potência idêntica, para assim assegurarem a soberania e território de cada uma delas. Nunca imaginámos que isto pudesse vir a acontecer.
– Mas não estou a entender porque nos chamou aqui – disse Phandora ainda não refeita da confissão.
– Tem razão – disse ele, endireitando-se na cadeira. – Pelas contas dos nossos técnicos, devemos ter um mês até sermos atingidos. Como sabem, a nave secreta onde está a Dr.ª Phandora a trabalhar neste momento pode transportar duas mil pessoas e manter-se no espaço durante um ano. Está já a ser feita uma selecção das pessoas mais imprescindíveis e competentes para participarem nessa viagem, assim como um grande grupo que irá assegurar a continuidade da espécie. O objectivo é voltarmos mais tarde, quando o planeta estiver estabilizado, para recomeçarmos a construção de uma nova colónia. Não irá ser tarefa fácil, mas com os nossos conhecimentos e os óptimos recursos da nave julgo que iremos conseguir.
– Ainda não percebo onde é que nós entramos – impacientou-se Zorki.
– Dr. Zorki, Dr.ª Phandora – disse ele solenemente –, o plano que lhes acabei de explicar não é absolutamente seguro, existe o risco de não conseguirmos voltar por variadíssimas razões. Permanecem obscuros alguns imponderáveis. Como segurança e garantia da continuidade da espécie, o que eu pretendo de vocês é… é que construam dois seres, dois pequenos seres semelhantes a nós, dois bebés de sexos diferentes para serem enviados para outro planeta. Iriam recomeçar uma nova civilização. Se tudo correr bem, num futuro longínquo poderia mesmo existir contacto entre os dois planetas, seriam uma espécie de planetas irmãos. O que é que vocês me dizem?
Zorki e Phandora estavam estupefactos.
– Grande Vortwon – perguntou Zorki, intrigado –, mas que planeta seria esse?
– Existe um planeta que tem condições climatéricas e atmosféricas muito idênticas às nossas. Tem 77% de nitrogénio e 21% de oxigénio, com traços de argônio, dióxido de carbono e água. Tem o elementar para conseguirem sobreviver.
– Mas como enviamos as crianças? – perguntou Phandora.
– Já percebi – interrompeu Zorki, batendo com a mão na cabeça. – Numa cápsula de viagem, não é? Mas isso vai demorar uma eternidade a chegar lá. Vão ser alguns anos.
– Mais precisamente dezoito anos – disse Vortwon. – Chegarão já como adultos. A minha equipa já fez os cálculos. Está agora tudo nas vossas mãos. Vocês são os mais competentes, encontrem-me soluções.
– Vamos precisar de mais técnicos a trabalhar nisto – replicou Zorki. – O prazo é escasso.
– Se tiverem alguém de inteira confiança, não me oponho – aquiesceu Vorthon –, mas atenção, este projecto é altamente sigiloso.
– Não se preocupe com isso – assegurou Zorki. – O segredo fica bem guardado. Vou precisar do meu assistente e de uma pessoa muito competente em clonagem, a Dr.ª Merchii.
– A Merchii? – perguntou Phandora visivelmente desagradada. – Porquê ela?
– Sabe bem que ela é a melhor nesta área – explicou-lhe Zorki. – Precisamos mesmo dela.
– Está bem, tem razão, doutora – acedeu Phandora resignada.
– Pronto, então estamos combinados – concluiu o Grande Vortwon. – A reunião acaba aqui. Bom trabalho e mantenham-me a par da evolução do projecto.
Zorki abandonou o edifício completamente perturbado. A sua cabeça era naquele momento um carrossel de pensamentos vertiginosos e muitas dúvidas. As revelações tinham sido surpreendentes e inesperadas. Pensava no destino do planeta, nas inúmeras cidades da colónia e nas suas populações. Ao longo dos anos tinham construído uma sociedade justa e evoluída, muito moderna e avançada tecnologicamente. Tinham desenvolvido os materiais mais nobres, resistentes, práticos e recicláveis. Descobriram novas fontes de energia poderosas, inócuas e mais eficazes. Revolucionaram a electrónica e tudo era controlado por minúsculos computadores. Desenvolveram máquinas voadoras simples e eficientes. Construíram naves gigantes, utilizadas nos percursos mais longos e, se necessário, manterem-se no espaço por vários meses. Era uma sociedade equilibrada, limpa, onde quase não existia criminalidade; graças ao chip introduzido no pulso, facilmente se identificava e localizava qualquer pessoa que eventualmente tivesse cometido algum crime ou infracção.
Zorki não podia acreditar que tudo iria desaparecer rapidamente.
No dia seguinte, encontrou-se no laboratório da nave com os restantes elementos da equipa, para iniciarem o projecto. Tiveram uma longa reunião.
– A técnica que vamos utilizar é relativamente simples e portanto exequível – explicou a Dr.ª Merchii. – Utilizamos uma célula de um indivíduo adulto que será fundida com um óvulo enucleado, ou seja, sem núcleo. O embrião gerado irá possuir o conteúdo genético da pessoa que doou a célula, e inicia o seu desenvolvimento ainda no laboratório. Posteriormente será transferido para o útero de uma fêmea receptora, onde se desenvolverá até ao nascimento. Conto com a vossa tecnologia para iludir o tempo que demoraria todo este processo normalmente…
– Quanto a isso não há problema – interrompeu a Dr.ª Phandora. – Temos toda a tecnologia necessária para acelerar todo o processo. A doutora faz a sua parte, nós faremos a nossa.
– Ainda temos a questão dos dadores para resolver – lembrou Purski, o assistente do doutor. – Quem irá fornecer as células?
– Numa situação normal recorreríamos ao nosso banco de dadores – explicou Zorki. – Neste caso isso não será possível, teremos que resolver entre nós.
Zorki já tinha esse assunto bem resolvido na sua cabeça. Phandora era uma cientista muito inteligente e competente, mas tinha uma personalidade estranha e quezilenta. Zorki não queria o clone fêmea, portador de tão mau feitio. A Dr.ª Merchii era o oposto. Afável e simpática, também muito inteligente e competente, e extremamente bonita.
– Os dadores – continuou Zorki – serão a Dr.ª Merchii e eu.
– A Dr.ª Merchii?! – vociferou Phandora –, mas porquê ela?
– Não vamos continuar esta discussão – ordenou Zorki. – Sou o responsável pelo projecto e quem decide sou eu. Vamo-nos concentrar no essencial e começar a trabalhar.
Phandora não se conformava, e saiu do laboratório encolerizada. Zorki olhou Merchii nos olhos. Havia ali alguma ternura dissimulada.
Apesar de tudo, Phandora empenhou-se no seu trabalho e o projecto foi crescendo. Ao fim de três semanas e meia nasceram os bebés.
Nova reunião.
– O projecto foi um sucesso – declarou Zorki satisfeito. – Estamos todos de parabéns.
– A cápsula criogénica também está pronta – disse Purski.
– É imprescindível que fiquem congelados até saírem da órbita do planeta – disse Merchii. – O excesso de temperatura iria destruí-los.
– Purski, assegurou-se que têm alimento suficiente para todos estes anos? – perguntou Zorki.
– Sim – anuiu Purski. – Serão alimentados por via intravenosa.
– Dr.ª Phandora, da sua parte está tudo pronto, presumo.
– Sim, doutor. Após a saída de órbita, a temperatura da cápsula será regulada automaticamente para valores ideais para o seu crescimento. Os microcomputadores celulares dos clones irão manter estável a sua saúde e corrigirão qualquer problema. Também os manterão a dormir até ao fim da viagem. Foram programados com uma validade de dezoito anos, depois disso destruir-se-ão.
– Muito bem – reconheceu o doutor. – De outra forma correríamos o mesmo risco, essas máquinas poderiam reproduzir-se e alterar toda a genética dos novos seres. Vou comunicar ao Grande Vortwon. A “encomenda” está pronta a ser enviada.
No dia seguinte Zorki entrou na sala de controlo. O Grande Vortwon ficou tão impressionado com o sucesso do projecto que o encarregou de comandar os destinos da nave. No meio da sala, o enorme tubo de luz continuava a armazenar energia. Precisavam de muita. O suficiente para um ano.
De repente o enorme painel vidrado iluminou-se. Apareceu a imagem do Grande Vortwon. Estava com um ar alarmado.
– Dr. Zorki, está a ouvir-me? – perguntou.
– Estou a ouvir, Grande Vortwon, pode falar.
– Houve um terrível engano nos cálculos da minha equipa. A bomba já foi despoletada, e começou a sua cavalgada destruidora. Algumas colónias do planeta já foram destruídas, e não deve demorar muito até sermos atingidos. Preparem tudo para partir, eu vou já para aí.
– Mas ainda não estão cá todos os seleccionados – disse Zorki.
– Não podemos esperar mais, partimos com os que temos.
– De acordo.
Zorki informou Merchii e Phandora sobre a evolução dos acontecimentos.
– Tenham tudo preparado – disse-lhes. – Eu vou já ter convosco.
Phandora teve naquele momento um acesso de raiva. Nunca esqueceu o facto de Zorki ter escolhido Merchii para dadora. Aproveitando um momento de distracção de Merchii, Phandora acercou-se do computador que controlava os clones e foi alterando aleatoriamente alguns dados.
Algum tempo depois Merchii dava um grito alarmada.
– Como é que é possível? Estes valores estão errados…

xxx

A onda devastadora provocada pela bomba arrasou todo o planeta.
Já nada restava.
Alheia a toda a destruição, a cápsula continuava afoita a sua solitária e derradeira viagem.
Chegava finalmente ao fim de dezoito anos.
A porta do receptáculo abriu-se a uma nova luz e os clones despertaram. Saíram, confusos, deslizando como cobras. Gatinharam até um pequeno ribeiro, descobrindo com espanto o reflexo das suas feições. Olharam um para o outro e esboçaram um sorriso inocente.
Iriam começar juntos uma nova vida, um novo planeta.
A cápsula iniciou um processo de autodestruição e foi desaparecendo muito lentamente. Nas letras desvanecidas ainda se podia ler: «Projecto Adam e Evha».

DEIXEM-ME VIVER!

A partir do final do Inverno, quando o Sol começava a aparecer e a aquecer os corpos fartos de frio e das chuvas, ela começava a passar os finais da tarde naquele jardim. Senhora de uns bons 70 anos de idade, cabelos grisalhos, para muitos, o princípio do fim, para outros, um símbolo de sabedoria. Da sabedoria ganha com os anos, mais uma etapa que se vence de quem se sente a envelhecer, mas, acima de tudo, com vida.
Sentava-se no banco de ripas de madeira, pintado de verde, bem junto ao lago com a fonte no centro, e cheio de peixes vermelhos, enormes, quase tão velhos como ela, que se passeavam indolentes pela paisagem sempre igual. Levava pedaços de pão do dia anterior, e entretinha-se a alimentar os peixes, jurando a pés juntos que eles a reconheciam quando chegava. Tinha dado nomes a todos, e conseguia distinguir cada um deles, simplesmente pela maneira de nadar, ou pelas peculiaridades das barbatanas. Os cisnes e os patos-reais já a reconheciam pelo andar, e, mal a divisavam, vinham a nadar graciosamente até ela, esperando receber o pão que escapava aos peixes. Cada um deles tinha recebido também um nome, e ela acariciava-lhes suavemente a cabeça enquanto desabafava as novidades dos filhos e dos netos.
Os meninos da escola em frente vinham ter com ela no intervalo grande, esperando ouvir alguma história do tempo antigo, em que vendia gelados e balões na Feira Popular. Ela sempre adorara crianças, e agora que os netos já eram quase adultos, vinha matar saudades com estes meninos, sempre ávidos de a ouvir.
Às vezes trazia milho, e isso era o que os miúdos mais adoravam. Ela colocava uns grãos nas suas mãos abertas e enrugadas, e dezenas de pombos rodeava-os, alguns pousando inclusivamente nas mãos estendidas que se ofereciam. No princípio os meninos tinham medo, retraíam-se e fechavam as mãos e os olhos, evitando o contacto de tanto susto. Mas com o passar do tempo, habituavam-se ao toque estranho dos patinhos, e riam-se com gosto quando ficavam cobertos de pombos até à cabeça. Era uma alegria imensurável.
E todas as tardes as crianças ajudavam a mascarar a sua solidão.
Os filhos tinham vidas ocupadas, trabalhavam muito para manter um nível de vida confortável, não tinham tempo para conversar com a velha mãe e ouvir as mesmas histórias repetidas até ao infinito.
Os netos estudavam ainda e ela bem sabia como a faculdade era exigente, despendendo bastante tempo na preparação dos exames, e há que estudar muito para estar pronto para a vida adulta.
Por vezes vinham visitá-la, preocupados com a saúde. Sugeriam-lhe um lar, dos melhores, cheio de comodidades, enfermeiras solícitas e ambiente limpo, onde não teria de se preocupar com as limpezas da casa, com a preparação das refeições e onde cuidariam dela com todos os pormenores. Mas ela dizia sempre que não.
Preferia ficar na sua casa, mesmo sozinha, mas onde se sentia livre e senhora da sua vida. Livre para passear por onde quisesse, para alimentar os peixes, patos e pombos do velho jardim, para animar as crianças da escola e encher as suas vidas de sonhos, com histórias distantes de animais que só podiam ver no jardim zoológico. Ensinar os nomes de cada bicho, de onde vinham, como cada um era importante e especial, tal como cada menino que se cruzava com ela na vida.
Todas as tardes era assim, não se fartava de contar mais uma história e nessa tarde contou uma história que todos gostavam de ouvir a pedido de um dos meninos:
— Senhora, conte a história do «Pintainho Bailarino».
E todos a escutavam em silêncio e admiração.
«A ninhada da galinha Sofia tinha doze ovos. Ela estava muito contente aguardando o nascimento dos filhinhos. Numa manhã fria, os pintainhos começaram a quebrar a casca do ovo, olhando para fora muito curiosos, como vocês.»
Os meninos riram e perguntaram:
— E que mais, senhora?
A senhora retomou: «E, feliz, Sofia acariciava os filhos colocando-os debaixo das asas, para aquecê-los. Mas de repente percebeu que um ovo não havia quebrado. Esse pintainho preferiu ficar lá dentro: dobrou as pernas e resolveu tirar uma soneca. Ela começou a ficar aflita e resolveu chamar o galo Mendonça, pai da ninhada. De tão preocupado até cantou fora de horas... O ovo mexia-se para um lado e para o outro quando Mendonça cantava. O alvoroço e a barulheira chamaram a atenção de Alberto e Sílvia, os donos do galinheiro, ficando impressionados com aquele ovo que se mexia.
— Ele dança ballet — disse a Sílvia.
— Que engraçado! — comentou Alberto.
Na verdade, o pintainho só acordava quando ouvia o canto de Mendonça. Achava a melodia carinhosa e balançava-se quando o ouvia.» Só que as crianças acreditavam de verdade que ele estava dançando e, para eles, o pintainho estava tão contente dentro do ovo que aprendeu a dançar. Imaginavam que abria e fechava o bico, saltava, fazia ziguezague, inventava passinhos, ficava na ponta dos pés, dobrava os joelhos e dava um pulinho. Agitava a asa, balançava a outra. Mexia os pés para a frente e para trás.
Dizia a senhora: «No dia seguinte, o pintainho dançou tanto que o ovo acabou rolando e quebrou-se. Ele olhou pelo buraco da casca, piou um olá para toda a gente e sacudiu o resto da casca. Todos festejaram, os irmãos acharam bonito e também começaram a pular, seguindo a mãe Sofia pelo galinheiro, até pareciam verdadeiros bailarinos.»
Terminava mais um dia belo desta velha senhora. Regressava a sua casa cansada, mas feliz pelo dever cumprido, de ver aqueles meninos contentes e preenchidos de carinho.
Naquela noite a velha senhora, D. Clara de seu nome, remeteu-se aos seus pensamentos:
«Ultimamente tenho dado por mim a fugir ao pequeno mundo e a olhar para as outras pessoas. Eu tenho medos, ansiedades, desejos e sonhos, mas raras são as vezes em que olho para os outros e consigo considerar a possibilidade de que sentem as coisas da mesma forma que eu (a maior parte das vezes parecem figurantes).
O que desejam? Irão algum dia cumprir os seus objectivos mais íntimos?
Olhando para fora acabo sempre a olhar para dentro... e eu?
Sei que aquilo que mais desejo é durar mais uns anos de vida, com vontade de viver.
Gostava de ter uma máquina do tempo, quero ver mais, quero saber mais, se conseguirei aquilo que desejo, a resposta daquela dúvida que sobe acima de todas as outras.
Sinto-me jovem em pensamentos e espírito, até pareço uma adolescente de 15 anos a questionar a sua existência. Se visse e soubesse que nunca esse objectivo iria, ou melhor, irei alcançar, valeria a pena continuar a viver?
Não consigo ver o meu futuro, o meu futuro muito próximo, sempre que penso no que virá acontecer, vejo escuridão, um enorme vazio, dor, solidão. Sinto um profundo desespero.
Meti as mãos na cabeça e comecei a sentir as lágrimas a acumularem-se nos olhos, à espera da ordem para atacar, e chorei.
Mais uma noite mal dormida e um coração endurecido, os dias passam, as noites passam, os anos passam, o sonho permanece e obscura a visão do presente, mas gosto de me deixar voar, gosto de imaginar outras pessoas, outras vidas, outras tristezas, outras alegrias. Gosto de me perder enquanto penso.
Às vezes deito-me com o receio de que no outro dia não vou acordar. Será frio? Será quente? Será esse nada assim tão mau? Queria arranjar uma forma de explicar!
A ansiedade de adormecer para deixar de pensar nas coisas que nos atormentam, mas existe sempre aquele momento em que, mesmo antes de fechar os olhos, estamos sós, como se apenas existisse só eu no meio da escuridão, no meio do nada. Sinto-me amparada. Encolho-me na cama, aperto a almofada. Sinto-me em paz. É assim que me sinto. Em paz, no meio do nada, aconchegada, amparada. O mais surreal nisto é de sentir-
-me assim quando tudo me devia empurrar na direcção oposta, o vértice de pensamentos autodestruidores. Não sei porque estou a sorrir agora, ao mesmo tempo que sinto os meus olhos a ficar húmidos, não sei mesmo. Estou farta de levar os meus pensamentos para o álbum de recordações e de navegar no mar das lembranças.
Sinto-me estranha!
A minha vida enche-se de significado, de um brilho especial, quando compartilho as minhas histórias com aquelas crianças e a alegria com que as vejo a correr para mim ainda dão mais sentido e significado à minha vida, recebo e dou.

Pela manhã fui fazer umas compras ao centro e, enquanto caminhava, deparei, ao passar na frente de uma obra, com vários trabalhadores da construção civil trabalhando, na seguinte cena: dois pedreiros estavam a construir um muro. Apesar de ser o mesmo muro, havia uma diferença notável: a parte de um estava baixa, enquanto a do outro era quase duas vezes maior.
O primeiro estava com aparência resignada e carrancuda, com evidente má vontade. O outro, ao contrário, estava alegre e feliz, até assobiava, com vontade de trabalhar.
Fiquei bastante intrigada e perguntei ao primeiro o que estava a fazer, ao que me respondeu: «Não vê? Estou construindo um muro.» Voltei a perguntar: «E para quê?» Ele respondeu imediatamente: «Ora, para ganhar a vida.» Perguntei a seguir a mesma coisa ao outro trabalhador e este, com um grande sorriso nos lábios, respondeu: «Um muro que parece um castelo.»

E lá segui o meu caminho pensando: «Como é bom ter entusiasmo para continuar a viver e a desejar intensamente estar viva e feliz.»