quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Bartolomeu

Breve introdução


Na aldeia do Arripiado dá vontade de passear de mão dada, ou não fosse o seu nome inspirado numa história de amor. Diz a lenda que no tempo das invasões mouras habitava no castelo de Almourol um casal que tinha uma filha que se chamava Ari. A jovem apaixonou-se por um rapaz cristão, mas este namoro não era aceite pelos seus pais. Para impossibilitar a fuga de Ari, o seu pai mandou colocá-la na mais alta torre da fortaleza. E para que não tentasse fugir, conta a lenda, pearam-na, isto é, ataram-na pelos pés. Ari peada morria de saudades do seu amado.
Certo dia, entrou na fortaleza uma pomba branca que trazia consigo a notícia de que o amado de Ari tinha sido morto. A jovem morreu de desgosto. A sua alma voou no corpo da pomba e foi poisar na campa do amado, frente ao Tejo, no cemitério da localidade que o povo passou a chamar de Aripeada, hoje a povoação do Arripiado.

É nesta aldeia que se inicia este pequeno conto. Numa aldeia à beira Tejo bem perto de Almourol. Os portugueses viveram muitos séculos voltados para o mar. Povo que se lançou no Atlântico e procurou noutras paragens o que em Portugal não tinha. A grande maioria nem sequer chegou a voltar.


I

Bartolomeu tinha nascido numa aldeia à beira Tejo, mais propriamente na aldeia do Arripiado, junto ao castelo de Almourol.
Apesar de a maior parte do povo da aldeia ser pescador, o seu pai seguira a profissão do seu avô – sapateiro. Como era o único no seu mister o trabalho ia dando para a “bucha”. Além disso tinham uma pequena horta onde cultivavam as batatas, o feijão, as alfaces e tantas outras pequenas coisas que ajudavam ao sustento da família.
No entanto, Bartolomeu ambicionava outra vida. Ir para a capital e daí para o “resto do mundo”. O “seu” Tejo levá-lo-ia um dia até lá.
Não queria seguir a profissão do pai nem a de pescador. Era uma vida dura e de pouco dinheiro. O seu pai bem o tentava convencer:
– Bartolomeu, se “nã” queres ser sapateiro como eu, então tens de ser pescador. Aqui na nossa terra “nã” há muito por onde escolher.
– “Nã” “mê” pai! Nem sapateiro nem pescador – e continuava. – Quero ir para Lisboa e de lá por esses “mares fora” à procura de outra fortuna. Vocemessês depois logo hão-de ver-me! – enchia o peito e bamboleava-se. – Hei-de trazer uma “arca cheiinha de caruto”. “Ósdepois” até compro a aldeia “intêra” – e ria-se do seu dizer.
– O “tê” mundo é aqui ao pé dos “tês” pais – retornava a mãe.
– “Nã se apreocupem quê hê-de” voltar. Mas voltar como um fidalgo. “Fêto” o Sr. D. José de Atayde.
– “Qu’é” lá isso moço! Tem mas é “tino” nessa cabeça. Pareces quase uma tainha de rio com vontade de ser garoupa – dizia-lhe o pai, meio a sério meio a sorrir.
Às vezes, ao fim da tarde, Bartolomeu sentava-se junto ao cais e olhava as barcaças que desciam o Tejo. O seu pensamento ia com elas e imaginava-se a chegar ao Cais das Colunas a desembarcar em pleno Terreiro do Paço. De Lisboa partia-se para o mundo...
Esse desejo foi crescendo com a idade.
Entretanto ia aprendendo a faina dos pescadores. Nas madrugadas de invernia levantava-se, comia uma “bucha” e ala que se faz tarde.
O batel do “Manel da Arruda” esperava-o no cais. Faziam-se rio abaixo em busca das enguias “gordas e fartas”. Eram um “pitéu” que os habitantes da capital apreciavam muito.
Nem sempre o rio era “generoso”. Havia dias que nada calhava na rede. Voltavam então cabisbaixos e de semblante carregado. Vingavam-se na taberna à volta de um jarro de tinto. Conversavam e diziam-se perseguidos pela “má sorte”. Muitas vezes as vozes alteravam-se e então era “porrada que fervia”.
Bartolomeu era bem constituído e como tal acabava sempre por “dar mais do que levar”. A “fama” foi crescendo e ao fim de um par de anos todos lhe tinham “respeitinho”. Ninguém ousava “desdizer” a sua verdade. Se tal acontecia, o corpo do infeliz sentia as agruras de uma mão pesada e habituada a bater.
Em jeito “dengoso” passeava-se pela aldeia lançando olhares lânguidos às moçoilas. Estas desviavam o olhar mas o coração, esse, batia descompassadamente.
O “tamanho” de Bartolomeu já pedia outras fronteiras. Era tempo de ir para a capital. Se muito o pensou depressa o fez. Num domingo de manhã tomou a resolução:
– “Mê” pai... vou “prà” Lisboa. Já “nã” consigo viver aqui. Parece que “inté arrebento” por dentro. Sou um “home” e um “home” tem de se fazer à vida.
O pai olhou-o longamente de alto a baixo, devagar voltou-lhe as costas e saiu para a rua sem proferir palavra.


II

Um verdadeiro formigueiro humano trabalhava dia e noite nas Tercenas da Porta da Cruz (1). Bartolomeu e o seu amigo Manuel Soeiro trabalhavam na “tenência” (1). O trabalho era árduo, mas compensador. Além disso, estava na capital, a um passo de concretizar o seu sonho.
Tinha conhecido o “Manel” no Rossio junto ao Hospital de Todos-os- Santos. Andava por ali a deambular “sem rei nem roque” quando se viu metido numa rixa de rua. Eram três a “malhar” no desgraçado e ele “não foi de modas”. Ao estalo e murro fez sair dali o “Manel” com algumas nódoas negras mas sem ossos partidos.
Após esse episódio e explicada a razão da sua ida para Lisboa, o Manuel Soeiro logo tratou de arranjar mister para o seu amigo Bartolomeu. A partir dessa altura tornaram-se companheiros inseparáveis.
Durante noites a fio vaguearam pela cidade, percorrendo os recantos mais sórdidos e mal-afamados. Foi tomando consciência desse seu “novo mundo” e esquecendo, a pouco e pouco, a sua pequena aldeia.
Entre baiucas e carvoarias foi conhecendo outros de ambições iguais às suas. O vinho jorrava a rodos e as conversas e amizades foram crescendo.
Tal como Bartolomeu havia tantos outros que procuraram “venturas” noutras paragens. Lisboa era a “porta aberta” para o mundo. Para lá do cabo das Tormentas havia outras gentes, outras terras e muito ouro. Falava-se do reino de Preste João (2), onde havia “homens com cabeça de cão”. A lenda já vinha do tempo de D. João II e muitos ainda andavam à sua procura...


III

Os vagalhões eram mais que muitos e os marinheiros andavam, qual bêbados, aos tombos pelo convés. Muitos choravam enquanto outros rezavam à Virgem que os salvasse daquela tormenta. Ao fim de várias horas de “luta” com o mar a tempestade foi abrandando e o mar serenou.
A “esfrangalhada” nau entrou no mar das Caraíbas. Bartolomeu e o seu companheiro Manuel Soeiro nunca tinham visto mar assim tão azul e transparente.
O comandante e o imediato encontravam-se doentes e com poucas forças para tomarem conta da embarcação e da tripulação. Bartolomeu, apercebendo-se da situação, tomou para si as rédeas da embarcação. O grupo que então tinha formado durante a viagem era-lhe totalmente fiel, pelo que depressa tomou o lugar de comandante.
A ambição rapidamente lhe subiu à cabeça. Mandou matar os que se lhe opunham e tornou-se pirata por oportunidade.
Com a força do seu lado e depois de se ter abastecido nas costas do Haiti, embarcou numa aventura em que terminaria “nas maiores misérias do mundo”. Antes de isso acontecer atacou várias embarcações e planeou saques a seu bel-prazer. Acabou preso mas em virtude de uma tempestade conseguiu fugir. Reunindo de novo os seus homens, acabou por se apoderar do navio que o tinha conduzido preso.
Ficou conhecido pelo estabelecimento de um código de regras que mais tarde seria apelidado de “código da pirataria” (3).


Epílogo

Ninguém sabe a verdadeira “história” deste pirata português. Tudo é pura ficção, mas poderia tudo ter acontecido assim ou... talvez não.



(1) As Tercenas da Porta da Cruz – criadas ou melhoradas por D. Manuel I – constituíam um verdadeiro formigueiro humano trabalhando dia e noite. Nelas se construía toda a espécie de barcos utilizados na época. Ao mesmo tempo, foram estabelecidos depósitos para guardar e conservar o material de guerra, e montadas oficinas para a fabricação de pólvora. Convém lembrar que, ao tempo, o fabrico da pólvora e da artilharia estava em grande parte a cargo de particulares. As Tercenas da Porta da Cruz estendiam-se por uma zona que hoje se poderia assim definir, aproximadamente: a norte, pela Rua dos Remédios; a oeste, pelo largo do Museu de Artilharia; a sul, pelo rio Tejo (que nos princípios do século XVI avançava mais para norte, estendendo-se até próximo dos locais em que hoje se encontram os edifícios do Museu e da CP), e a leste, pela Calçada do Forte e Largo dos Caminhos de Ferro.
(2) O Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao imperador da Etiópia. “Preste” é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre. Diz-se que era um homem virtuoso e um governante generoso.
No seu reino condensavam-se o reino cristão-monofisita da Abissínia e os cristãos nestorianos da Ásia Central. Diz-se também que era descendente de Baltasar, um dos Três Reis Magos. Como as notícias palpáveis desse império cristão eram escassas, dilatava-se a fantasia em redor do seu reino: falava-se de monstros vários (entre os quais os homens com cabeça de cão), paisagens edílicas, etc. O Inferno e o Paraíso num só território.
As notícias (em forma de lenda) do Preste João chegavam à Europa pela boca de embaixadores, peregrinos e mercadores, sendo depois confirmadas pelo infante D. Pedro, que viajara “pelas sete partidas do mundo”, e ainda pelo seu inimigo D. Afonso, conde de Barcelos, que fizera peregrinação à Terra Santa.
Em 1487, D. João II envia Afonso de Paiva para investigar a localização do mítico reino (que corresponde à actual Etiópia), na tentativa de torná-lo aliado numa possível expedição para a Índia, em fase de planeamento.
(3) Bartolomeu Português foi um pirata português do século XVII. Foi o responsável pelo estabelecimento do primeiro código de regras popularmente conhecido como “código da pirataria”, usado posteriormente por piratas como John Philips, Edward Low e Bartholomew Roberts.

O livro dos dias

“Agarra!”

“Ladrão!”

Os gritos seguiam-no enquanto corria pela rua de paralelepípedos escorregadios, mas prestava-lhes pouca atenção. O céu estava coberto de nuvens de tempestade e a chuva estava cada vez mais forte, não o iam apanhar, não, graças à tempestade. O livro que havia roubado momentos antes estava em segurança sob a sua roupa. Ele não sabia nada do livro ou do seu conteúdo, sabia apenas que há já muito que não tinha nada para ler. O vento fustigava-lhe os fios de cabelo negro para os olhos, turvando-lhe a visão através da chuva intermitente. Não foi fácil fugir assim às cegas, mas em pouco tempo ficou bem longe do ponto de partida, bem longe da livraria. Ali não havia ninguém, naquelas ruas desertas, enquanto a tempestade aumentava rapidamente. Entrou no beco, para dentro do buraco a que chamava casa, onde o esperava um gasto cobertor, um velho candeeiro a petróleo e uma muda de roupa seca. Suspirou numa relativa felicidade retirando o livro debaixo da velha camisa.

Foi então que o pôde ver bem. Uma capa de couro preto macio com adornos de bronze nos cantos. Estendeu a mão e acariciou o negro couro, um arrepio, uma forte sensação a pele, levou-o a retirar a mão imediatamente. Há já tanto tempo que ele não tocava em pele, na pele de alguém. As páginas ligeiramente amareladas da idade eram de um papel bom, de qualidade. Secou as mãos no cobertor, encostou-se na parede de tijolo e abriu a capa. Na primeira página o título numa perfeita caligrafia que ele impacientemente ignorou, avançando uma série de páginas. Nunca fora um “homem” de prefácios. No mesmo tipo de letra perfeito lia-se:

“Roubou-me no meio de uma tempestade. Se eu não o soubesse, diria que vinha um dilúvio a caminho. Foi um roubo básico, ninguém no seu perfeito juízo iria para a rua perseguir um ladrãozeco no meio daquela chuva e daquele vendaval. Ele agarrou-me, meteu-me debaixo da camisa e fugiu daquela livraria. Já não era sem tempo. Gostava de saber quando é que ele vai perceber.”

A frustração abateu-se sobre ele. Roubara um livro chato com uma história chata. Avançou para o final, mas encontrou-o em branco. Folheava para a frente e para trás, mas, por mais que folheasse, lia sempre a mesma passagem. Atirou-o fora, ali mesmo, para o beco e para o meio da tempestade. Afinal qual fora a ideia, mais valia ter roubado algo de útil. Ainda pensou que o podia usar para acender uma pequena fogueira para se aquecer, mas decidiu que não valia a pena. Enrolou-se no cobertor e deixou que o som da chuva a embater nas pedras da calçada o arrastasse para o sono.

Não dormiu bem naquela noite. De manhã acordou e descobriu-se com a cabeça apoiada na pele preta do livro, aparentemente sem que a tempestade o tivesse sequer tocado. Não se lembrava muito bem da noite anterior. Gemeu. Sentia-se horrivelmente mal, dorido. Mesmo com a fraca alimentação e as míseras condições de vida, raramente ficava doente. O céu era de um deprimente cinzento-chumbo, o que correspondia na perfeição à sua disposição. Esfregou as mãos para as aquecer na disposição de tentar encontrar algo para o pequeno-almoço.

Mas antes tinha de tratar do livro. Era algo que estava a começar a incomodar-lhe. Agora, plenamente acordado, lembrava-se perfeitamente de o ter atirado fora na noite anterior. Mas como é que ele encontrou o caminho até sob a sua cabeça? Parou no meio da rua e abriu-o. Um calafrio percorreu a sua espinha quando viu mais uma página cheia com a mesma caligrafia elegante. Aquilo não estava lá na noite anterior.

“Tentou deitar-me fora na noite passada. Acho que ele ainda não compreendeu que agora faço parte da sua vida, até que assim o deseje. O que mais me diverte é ele pensar que detém o controlo. Mas ele não sabe que não é o primeiro, não, não é o primeiro e definitivamente não será o último.”

Correu para o rio o mais rápido que os seus velhos sapatos conseguiram, tropeçando várias vezes ao longo do caminho. Quando chegou estava ofegante, sujo e enlameado, mas isso não importava, não tanto como esse livro sinistro e assustador.

Num gesto largo atirou-o ao ar, aterrou na água num turbilhão de salpicos de água, lama e detritos. A sua atenção no entanto foi atraída para um bando de pombos que a alguns metros dali arrulhavam em volta de qualquer coisa. Esperava que fosse um pouco de pão duro ou fruta pisada, o que daria um excelente pequeno-almoço. Avançou até lá agitando os braços e gritando para os afugentar. O que viu não só o fez perder o apetite, como o choque de tal visão o fez petrificar ainda em andamento - livro. Mas, não. Ele tinha acabado de o atirar fora. No rio, ele tinha-o visto cair, tinha ouvido o barulho, o spash...

Com cuidado pegou nele pelas decorações de bronze de um dos cantos, evitando tocar o couro da capa, como se ele o pudesse queimar.

“Tentou desfazer-se de mim outra vez. Quando é que ele vai perceber? Talvez com o tempo, mas aí já será tarde de mais... Devo descartar-me da criança. O seu tempo esgota-se, mas a questão é quando. E como. Em breve, deixará de ser útil para mim.
O rapaz está-me a aborrecer. Tentou queimar-me esta manhã e destruiu o candeeiro ao fazê-lo. Palerma. Não tenho tempo para mais jogos infantis. Acho que o rio vai ser um lugar apropriado, vou ver-me livre dele tal como tentou ver-se livre de mim.”

Tinha fome e frio e o sono queria tomar conta de si à viva força. Já lá iam três dias desde o incidente com o candeeiro e ele não tirava os olhos do livro do diabo desde que este decidira que se iria afogar. Não se afastou dele nem um milímetro, não podia, não, ele estava imerso naquela caligrafia. Leu e releu aquelas páginas, mesmo depois de o sol se pôr com a ajuda de uns cotos de vela que tinha encontrado. Folheava constantemente aquelas páginas na obsessão de encontrar algo mais quando reparou que a luz desapareceu rapidamente. De forma desastrada tentou acender um dos cotos com os pequenos fósforos, queimando-se várias vezes. Em poucos minutos ficou mais escuro, o negrume fechou-se sobre si e nem as velas ajudavam. Pegou no pequeno coto e segurou-o a alguns centímetros de distância da página, com muito cuidado para não a queimar, mal conseguia distinguir as letras, com a tinta ainda húmida:

“Fim.”

Um vento gelado soprou pelo pequeno vão de escada, arrancando um pedaço de cartão que servia de parede e apagando as pequenas velas. Ele não conseguia respirar. Se pudesse, teria gritado. Caiu nas pedras da calçada, numa inefável agonia.
O livro tombou ao seu lado. Algo húmido, suave e frio o submergiu, arrastando-o. Rezou e esperou pelo fim que lhe havia sido prometido.

Quando, três dias depois, o seu corpo sem vida foi encontrado em alto mar por um pescador, as autoridades ficaram perplexas. Não havia uma única evidência de danos físicos ou evidências lógicas para a morte deste rapaz. Segundo o pescador, a única coisa que tinha com ele era um livro. Um livro ao qual estava abraçado. Uma capa de couro preto macio com adornos de bronze nos cantos e páginas ligeiramente amareladas de um papel de boa qualidade.
O que impressionou mais a polícia, o mais estranho, era que o livro não tinha o mais pequeno sinal de ter estado na água todo aquele tempo. Estava perfeito. Perfeito até de mais.