quarta-feira, 29 de abril de 2009

Rodolfo

A vila de Marvão é um dos mais belos e preservados povoados medievais, cercada pelo seu castelo e muralhas a 862 m de altitude, em plena serra de São Mamede, a norte do distrito de Portalegre, da qual se desfruta uma bela vista sobre a planície alentejana, as serras da Estrela e da Gardunha e terras de Espanha.

Rodolfo era um homem de 49 anos e de aspecto um pouco taciturno. Talvez fruto de uma vida madrasta e que lhe dera aquele ar tão carregado.
Tinha nascido e crescera na pequena vila alentejana de Marvão junto à raia espanhola. A sua vida não fora propriamente um mar de rosas. O pai morrera ainda ele era um cachopo. Mal fizera a 4.ª classe e viu-se no meio de homens com uma foice nas mãos entre as searas de trigo. A vida roubara-lhe a adolescência que alguns dos seus companheiros tinham vivido.
Por força das circunstâncias passou a ser o suporte financeiro daquela família de cinco irmãos. A mãe trabalhava em casa de uns senhores ricos a fazer o serviço de lavadeira. Sobravam-lhe os domingos para folgar o corpo e o espírito. Ainda namoriscou algumas das moças da vila, mas aquele seu ar tímido e de «cara-fechada» acabou por não fazer sucesso junto do sexo oposto.
O tempo livre começou-o a passar mais nas tabernas a jogar à bisca ou ao dominó. Aí, sim, tinha sucesso. A sorte bafejava-o no jogo e como tal haviam sempre amigos para quererem ser o seu par.
O estar perto da raia espanhola fê-lo conviver com os negócios escondidos do contrabando. Ouvia-se «à boca calada» de pessoas que iam, de noite, passar a fronteira para comprar e vender produtos. Dos dois lados da fronteira haviam acordos tácitos sobre os negócios. A própria Guarda Civil espanhola e a GNR portuguesa fechavam os olhos. No fundo, também, alguns deles ganhavam com esse negócio transfronteiriço. No entanto ele nunca se metera “nessas confusões”.
Com a Guerra Civil espanhola veio gente fugida com medo e fome. Alguns foram ajudados por gente da terra. Ainda que a medo, escondiam-nos em suas casas e davam-lhes de comer. Tempos difíceis aqueles…
Depois de cumprido o serviço militar viera à aventura para Lisboa. Conseguira arranjar emprego num pequeno restaurante. Pontualmente enviava para a terra o dinheiro que conseguia juntar no fim de cada mês. Ficava com as «gorjas» que os fregueses mais simpáticos lhe deixavam nas mesas, o que lhe ia dando para os gastos com o tabaco e, uma vez por outra, uma ida ao cinema. Certo dia recebeu uma carta da mãe a dizer que a polícia tinha ido lá à aldeia, e, sem se saber porquê, tinham levado o Etelvino numa carrinha. O Etelvino era filho da “Tia Joana da Arnica” e tinha sido dos poucos amigos “a sério” que tivera. “Amigo do seu amigo” – era assim que pensava dele. Nunca chegou a saber o porquê dessa prisão. “Corria” na terra que tinha sido deportado para “fora”. Após “isto”, Rodolfo nunca mais foi o mesmo. Um dia, pensou: haver-se-ia de vingar, iria para um outro lugar e retornaria para resolver a questão.
Agora estava num país distante, longe dos seus, e sentia saudades dos tempos de menino de aldeia. Parecia que tinha na sua frente o campo coberto de searas, o cantar das cigarras, o sol, esse sol tão português estava agora bem longe. Vieram-lhe servir o prato que encomendara. Tinha resolvido que, pelo menos uma vez na vida, iria comer como um príncipe e agora deparava-se-lhe essa oportunidade. Queria lá bem saber do que viria depois: – É aproveitar agora!… – pensava de si para si. Desde que chegara era a primeira vez que tinha aquela sensação. Pareceu-lhe que, de repente, toda a gente o olhava de outra forma. Ainda se lembrava que ao desembarcar tinha dado de “trombas” com um agente que lhe pedira, mas que ele não entendera nada, “pelos documentos”. Os dias que se seguiram foram um martírio, não fosse a sua vontade de “levantar” cabeça e teria regressado de imediato. Bebeu um cálice de conhaque Napoleon e fumou uma “charutada”.
– Óh “garçon”, chegue aqui por favor – e riu-se dessa forma de dizer “garçon”.
– V. Ex.ª deseja mais alguma coisa? – perguntou solícito.
– Agora “prà acabar” quero a conta – iria regressar a Portugal! Olhava o bilhete do comboio… «23-Avril-1974 – 17.00 heures – Gare du Nord».
Por entre toda aquela “massa humana” em delírio, Rodolfo, com os olhos marejados de lágrimas, olhava os tanques, os cravos nas mãos dos soldados, as vozes que gritava: “Viva a liberdade!”
Na rádio ouvia os apelos que o MFA fazia para todos se manterem em suas casas. Mas naquele momento ninguém acatava os pedidos de quem quer que fosse. Havia uma alegria que atravessava a cidade de lés-a-lés. Lisboa “vestia-se” do verde da esperança e do vermelho de revolução. Finalmente chegara o dia da “vingança”… num Abril em Portugal!

Gravura de: José Bandeira

Orgulho lusitano

– Ó pai, ainda falta muito?
– Tem calma, filha, estamos quase a chegar.
– Mas pai, está tanto trânsito… quando chegarmos a piscina já vai estar cheia.
– Sossega, Andreia, deixa o teu pai conduzir descansado, já sabes como ele é, consegue sempre desenrascar-se. Ó Juvenal, vamos ter que ficar aqui na seca nesta fila enorme?
– Cambada de lesmas – praguejou o Juvenal, enquanto estendia o pescoço a tentar perceber até onde ia aquela imensa fila de carros. – São uns totós, não se mexem. Eu vou já resolver isto Natércia.
E de imediato o Juvenal concretizou o que disse. Saiu da fila a toda a velocidade, colocando-se na faixa de rodagem destinada a outras direcções, e foi ultrapassando aquela imensidão de carros que permaneciam imóveis. Chegado o momento de voltar à sua faixa, o Juvenal aproveitou uma brecha para aí se enfiar vitorioso, indiferente às incrédulas buzinadelas dos outros condutores que manifestavam o seu protesto.
– Boa! – exclamou o Gonçalo, o filho mais velho. – O pai é o maior, ficaram todos para trás. Quando tiver um carro, também vou passar todos – rejubilava ele enquanto bebia um pacote de sumo.
– Ó Gonçalo, dá-me um bocadinho do teu sumo – pedia o João, o filho mais novo.
– Já bebeste o teu todo – respondeu-lhe o Gonçalo. – Deixa-ma beber descansado.
– És mau – lamentava-se o João. – Quando me pedires alguma coisa também não te dou.
– Olha, já acabou, queres um bocado? – perguntava Gonçalo em tom de gozo.
– Ó pai, o Gonçalo atirou o pacote de sumo pela janela – gritou João indignado.
– E então qual é o problema? – perguntou o pai. – Nós não temos caixote do lixo no carro.
– Mas na escola a professora disse que nós devíamos…
– Está bem, esquece a professora – interrompeu o pai. – Aqui o professor sou eu.
– Ouve o que o teu pai diz, Joãozinho – disse a mãe. – Olha que ele tem muita experiência de vida. Mais até que a tua professora.
– Pronto, já chegámos – suspirou Juvenal. – Agora só falta arranjar um lugar para estacionar.
– Não vai ser fácil – disse Natércia roendo as unhas. – Está tudo cheio.
– Vai já ficar aqui – disse ele.
– Mas pai, aqui é uma linha amarela, não se pode – disse Joãozinho.
– Não vai ser uma linha amarela que me vai impedir de estacionar.
O Juvenal estacionou e todos saíram numa azáfama atropelada, esvaziando o carro de toda a tralha que os acompanhava. A geladeira era a peça mais preciosa do rol, cabendo a Juvenal a segurança do seu transporte.
A família dirigiu-se para a fila da bilheteira, arrastando com orgulho todo o seu precioso equipamento, enquanto Juvenal congeminava uma forma de se desenrascar dali rapidamente.
– Joãozinho, vai ao colo da tua mãe – ordenou ele. – Venham comigo.
– Eu não quero ir ao colo, não sou nenhum bebé – resmungava Joãozinho.
– Está calado, faz o que te disse.
Joãozinho acedeu contrariado. Dirigiram-se para o balcão da bilheteira e Juvenal, com um ar bastante aflito, abordou as primeiras pessoas da fila pedindo-lhes para passar à frente, porque o seu filho tinha ficado subitamente mal-disposto e tinha necessidade de entrar rapidamente para que pudesse ir à casa de banho. As pessoas, apanhadas de surpresa com aquela situação e com o ar apoquentado de Juvenal, concordaram em deixá-lo passar.
– Eu não estou doen… ai!
A mãe interrompeu o Joãozinho apertando-
-lhe um braço. Entraram triunfantes. Faltava escolher o lugar mais favorável para se instalarem confortavelmente e desfrutarem de uma tarde bem passada em família. Juvenal varreu o recinto com o seu olhar de lince e decidiu:
– Vamos para ali, estou a ver uma espreguiçadeira livre.
Esvaziaram sacos e mochilas e foram-se instalando numa grande agitação.
– Ó Juvenal, precisávamos de pelo menos mais uma espreguiçadeira – exclamou Natércia. – Vai ser difícil, parece estar tudo ocupado.
Juvenal não respondeu, ficou atento a analisar a vizinhança de ocasião. Dirigiu-se a uma série de espreguiçadeiras que se encontravam com as toalhas em cima e permaneceu aí alguns instantes observando disfarçadamente. Certificou-se que ninguém estava a ver e, de repente, arrastou uma espreguiçadeira consigo atirando a toalha para cima de umas mochilas.
– Pronto, já está – disse Juvenal. – Já temos outra.
– Mas a cama era daqueles meninos – disse o Joãozinho alarmado.
– Fala baixo – sussurrou a mãe. – Eles vão estar sempre na água, não vão precisar dela.
– Ó pai, podemos ir para a água? – perguntou o Gonçalo.
– Sim, vamos lá dar uns mergulhos, mas tu, Natércia, ficas aqui, não vá desaparecer nada, com esta gente nunca se sabe, mais vale prevenir.
E assim passaram a tarde felizes, entre mergulhos, merendas e comentários avulsos sobre os artigos das revistas cor-de-rosa que a Natércia ia folheando.
Esta família, como tantas outras, padecia de uma filosofia de vida violentamente marcada, quem sabe, por uma qualquer deficiente matriz lusitana traduzida numa dificuldade evolutiva, ou por uma mal-fadada herança de vários anos de repressão e ignorância cuja libertação se interpretou e assimilou de forma deturpada ou extrapolada, transformando-se numa correria imensa, numa competição tenaz, onde as regras, civismo e educação são constantemente invocadas por todos, mas endereçadas e aplicáveis somente aos outros.
Nesta família, como em tantas outras, a principal máxima é o “desenrascar”. Este princípio, fortemente enraizado na nossa sociedade e em todos os estratos sociais, partilha diligente o nosso dia-a-dia, engatilhado e pronto a disparar em qualquer ocasião de necessidade. Está presente em todas as profissões mas torna-se por vezes imperceptível, dissimulado, entre técnicas de esperteza ou habilmente encobertas por retóricas académicas. Toda a gente espera um país mais próspero e evoluído, mas contam sempre que haja alguém a trabalhar nesse sentido, esquecendo-se que a sua própria participação na construção de algo pode ir muito mais além do que o desfilar de queixumes e lamentações. Este espírito do “desenrasca” é um verdadeiro travão à evolução e desenvolvimento de uma sociedade.
Mas voltemos à piscina, onde se encontram todos. É já final de tarde.
– Juvenal – disse a mulher. – Antes de irmos para casa, preciso de passar no supermercado.
– Está bem – respondeu o Juvenal disfarçando o olhar que tinha pregado numa morena luzidia. – Meninos, vamo-nos secar para irmos embora.
Secaram-se, arrumaram as tralhas e saíram, dirigindo-se ao carro arrastando os chinelos, enquanto mastigavam o resto do farnel.
– Olha pai – disse a Andreia. – Tu foste o primeiro a estacionar ali e agora já estão lá tantos.
– Pois é – respondeu Juvenal fanfarrão. – Já diz o velho ditado… à terra onde fores ter faz como vires fazer. Aprende minha filha.
Meteram-se no carro e arrancaram, cantarolando a música do rádio, que gemia entre graves distorcidos, aflitos com o excesso de volume.
Mais à frente, uma fila de trânsito que se movimentava muito lentamente e muitas buzinadelas. Alguns minutos depois, Juvenal apercebeu-se da razão daquela fila.
– Já viste isto, Natércia – disse ele indignado. – Estes idiotas estacionam aqui em fila dupla para ir ao Multibanco, não há respeito nenhum. Tirem daqui as latas – dizia ele enquanto apitava violentamente. – Seus anormais.
– Que falta de civismo – suspirava Natércia.
Chegaram finalmente ao supermercado e, como havia falta de lugares de estacionamento, Juvenal meteu o carro num dos lugares reservados a deficientes.
– Ó pai, este lugar é para as pessoas doentes – explicou o Joãozinho.
– Olha, nem tinha reparado – disse Juvenal. – Mas vai ser rápido.
– Se precisarem, ainda têm ali outro lugar reservado – disse a mãe. – Vamos lá depressa.
Joãozinho olhava desolado para os irmãos que lhe faziam algumas caretas, aquelas situações confundiam-no e atormentavam-no bastante.
Existem felizmente ainda muitas pessoas esclarecidas que não partilham de todo este espírito tacanho, possuidoras de lucidez suficiente para evitar esta onda medíocre, enjeitam qualquer manifestação de «chico-espertismo».
Talvez o Joãozinho venha a ser uma delas, ou talvez não.
Dentro do supermercado, dirigem-se à frutaria. Enquanto Natércia escolhe a fruta, o Juvenal vai petiscando aqui e ali. O Gonçalo chega com um iogurte líquido, abre-o e começa a beber.
– Ó pai, também quero um, posso ir buscar? – pediu a Andreia.
– Está bem, vai lá e traz um para o João.
– Eu quero beber o meu em casa – disse Joãozinho.
– Porque não bebes aqui? – perguntou-lhe Juvenal.
– Porque não, prefiro beber em casa.
O iogurte do Joãozinho foi para dentro do carro de compras, os outros dois foram para o caixote do lixo do supermercado.
Deram mais umas voltas pelos corredores e dirigiram-se às caixas.
– Vamos para uma dessas caixas rápidas – disse Juvenal.
Chegaram à caixa e colocaram as coisas sobre o tapete rolante. A operadora alertou-os para o facto de aquela caixa estar destinada a um limite de dez artigos. Como excediam o estabelecido, Juvenal resolveu distribuir as compras.
– Estas são minhas, aquelas da minha mulher e as outras do meu filho – disse ele. – Eu pago todas.
A operadora concordou, ficando sem palavras. Desenrascado este Juvenal.
Chegaram finalmente a casa, uma bela vivenda construída pelo Juvenal. Era a sua profissão, a sua arte. Juvenal era empreiteiro, dedicava-se a construir vivendas e moradias com o seu cunhado irmão de Natércia. Ele e a mulher, beneficiários do rendimento mínimo, viviam em casa do Juvenal. Enquanto os maridos trabalhavam, as mulheres faziam companhia uma à outra, saíam juntas, iam ao cabeleireiro, faziam compras nos centros comerciais e organizavam uns lanches com as amigas.
Natércia há já muito tempo que se encontrava de baixa. Depois de três dias de suspensão do seu emprego, achou que não se encontrava bem psicologicamente para ir trabalhar. Era funcionária pública, trabalhava nas finanças, descobriram que, valendo-se da sua posição, dava uns jeitos nalgumas papeladas a troco de generosos presentes. Mandaram-na para casa três dias para reflectir.
Em casa os miúdos já estavam avisados de que se fosse lá alguém perguntar pelos tios eles responderiam que moravam lá porque eram pobres e não tinham casa para morar.
– Ó Juvenal, amanhã vai o fiscal à vivenda lá de cima do monte – disse Gustavo, o cunhado de Juvenal.
– Ah, pois vai, já sabes o que tens a fazer. Deixa-lo ver tudo o que quiser e depois… entregas-lhe o respectivo envelope, precisamos daquilo aprovado.
– Ok. E aquele assunto dos empregados? Eles dizem que se não lhes pagar, vão-se embora.
– Deixa-os ir, também não fazem nada de jeito, eu já estou a tratar de arranjar outros, tenho aí em vista uns trabalhadores de Leste, estão ilegais, esses são mais fáceis de controlar. Amanhã tenho que ir às finanças resolver aquele assunto. Os gajos não percebem como é que a empresa dá prejuízo todos os anos, devem pensar que eu ando para sustentar pançudos. Eu vou falar lá com um doutor conhecido da Natércia e vamos conseguir controlar o problema, tem sido sempre assim, eles que trabalhem, não vou eu pagar impostos, para suas excelências estarem alapadas na assembleia sem fazer nada.
– Então já decidiste qual é o jipe que vamos comprar para a empresa? – perguntou Gustavo.
– Olha, ainda não sei, ouvi falar aí de uns novos fundos de apoio a pequenas empresas, pode ser que se arranje qualquer coisa – respondeu Juvenal piscando o olho.
– Ah, lembrei-me agora – disse Gustavo batendo com a mão na cabeça. – Temos muito entulho para tirar da obra, para onde é que o levamos?
– Despejem-no lá para trás no meio do pinhal – disse Juvenal enquanto passava os olhos pelo jornal. – Alguém o há-de limpar mais tarde.
– Meninos, todos para a mesa, o jantar está pronto – anunciou Natércia.
Jantaram animadamente e depois dirigiram-se à salinha para tomar café e conversarem.
Os miúdos viam televisão.
– Ó pai, amanhã vou ter um teste – disse o Joãozinho. – Vou lá para dentro estudar um bocadinho.
– Estudar? – questionou Gonçalo em tom de gozo. – É preciso é fazer uns copianços…
– Está calado – irritou-se Joãozinho. – Eu não gosto de copiar.
– Pronto, não se zanguem – disse o Juvenal sorrindo. – Não gostas de copiar, não copias, eu só quero que vocês me tragam boas notas, agora se copiam ou não… o problema é vosso.
Mais tarde, todos se deitaram. Tinha terminado mais um dia de luta.
Este instinto de sobrevivência, quase selvagem, embora hiperbólico pelo seu teor cumulativo de episódios, alguns caricatos outros mais graves, acaba por retratar a predisposição de uma parte significativa da sociedade para recorrer a este tipo de técnicas. É claro que estas são situações perfeitamente identificáveis e conhecidas.
Mais grave ainda será o uso de técnicas semelhantes por alguns Juvenais com muito mais formação e poder em situações que a maior parte das pessoas não compreende nem domina. Nos restantes reside a esperança.
Esperemos que novas gerações surjam com um novo espírito mais empreendedor e construtivo, voltado para o desenvolvimento, para o futuro.
Passaram-se vinte anos.
Juvenal continuava a trabalhar mas já sem o seu cunhado, que tinha emigrado. Continuava com o seu jogo de cintura, sempre a fugir de alguém, sempre a esconder-se de um fornecedor, de um cliente ou das finanças.
A mulher conseguiu reformar-se mais cedo, já não estaria na posse de todas as suas faculdades mentais.
Andreia formou-se em Direito e era vereadora na câmara. Estava a braços com um processo por peculato, mas nada que lhe tirasse o sono.
Gonçalo interrompeu os estudos e seguiu as pisadas do pai. Ele e um amigo montaram a sua própria empresa de construção. Alguns anos depois, enganou o sócio e fugiu com o dinheiro da firma. Encontrava-se em parte incerta no estrangeiro.
Joãozinho era professor. Era um bom professor, sempre preocupado com a educação dos seus alunos e da sociedade em geral. Tinha poucos contactos com a sua família.
Anos mais tarde, Juvenal morreu e ascendeu a outra dimensão.
Algures, num majestoso palácio, andavam todos muito aflitos, nunca tinha acontecido nada assim.
Juvenal estava numa bela sala cintilante e imaculada, instalado numa faustosa poltrona que parecia feita de algodão.
– Como é possível teres entrado aqui? – perguntaram-lhe incrédulos. – Como conseguiste passar pelos nossos guardiães? Quem és tu afinal?
– Eu…ora, eu sou o Juvenal… e sou português.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

HEITOR


Naquele dia, cinzento como o eram todos por muito que o sol brilhasse, Luís entrou no prédio e dirigiu-se para o elevador, que repentinamente se abriu, surpreendendo-o. Lá dentro estavam o Heitor e o Sr. Afonso, que, com o braço esticado, segurava a porta para que ele entrasse:
– Ia subir, mas apercebi-me que alguém estava a chegar. Entre. Entre, ele não faz mal. Pode estar à vontade.
– Obrigado. É muito bonito o seu cão – sussurrou Luís, receoso.
– Chama-se Heitor. Pode tocar. Faça-lhe festas que ele não ferra. É muito brincalhão e estouvado, mas não faz mal a uma mosca.
– É melhor não – disse Luís, que, com as pernas trémulas e as mãos escondidas dentro dos bolsos, se encostou receoso a um canto do elevador.
– Não se atemorize, homem, já lhe disse que ele não faz mal e além disso eu estou aqui – a severidade no tom da voz denotava censura pelo medo que visivelmente se apoderara de Luís. – Vai para o terceiro não vai? Eu vou para o quarto, moro no andar por cima de si. O meu nome é Afonso.
– O meu é Luís – as palavras juntaram-se a custo num ciciar pálido e a pele branca da cara enrubesceu, salpicada pelos tons vermelhos do pavor.
Enquanto afagava tranquilo o suave dorso de Heitor, O Sr. Afonso fixou de soslaio o seu timorato vizinho, sem se preocupar em disfarçar um olhar de desprezo.
Os segundos que o elevador demorou a chegar ao terceiro andar pareceram uma eternidade.
Pequenas gotas de suor frio nasciam ao cimo da testa, envergonhadas, escondidas entre os primeiros cabelos. Sentia comichão, mas naquele instante estava paralisado. Luís temia que alguma mais atrevida descesse testa abaixo, expondo a tibieza do seu carácter, mas, apesar disso, não tirava as mãos dos bolsos. Esmagado entre os perturbadores olhos azuis – um azul gélido – com que aquele imponente animal o fitava e o esgar de desdém estampado no rosto do dono, Luís perdia forças, mingava, quase desfalecia, cedendo à força do medo. Martírio silencioso!
«Não, não posso. O que vai ele pensar de mim? Se já considera que sou um tremendo cobarde, um medricas sem coluna vertebral, o que não pensará se eu desmaiar aqui á sua frente. Amanhã toda gente do prédio saberá quão fraco e insignificante sou. Meu Deus, porque demora tanto! O elevador está parado ou sou eu que estou fora de mim? Que vergonha! Que nojo! Que nojo tenho de mim!»
Naquela cabina do desespero, as unhas das mãos cravavam-se nas coxas com tamanha força que provocavam dor. Era como se a sua sobrevivência dependesse daquela pressão. Os músculos doloridos sofriam subjugados por aquele doentio cérebro que lhe aprisionava o corpo e o escravizava. As costas, para que as costelas se mantivessem unidas e não se desarticulassem, forçava-as contra a parede, e o pescoço inerte, vergado pelo peso da cabeça, tombou para o lado como um peru bêbado.
– Já está no seu andar. Vá lá… desta safou-se com vida! – chacoteou o Sr. Afonso apontando o dedo para a luz com o número três.
Luís saiu apressado, balbuciando atabalhoado um imperceptível:
– Adeus… e bom dia.
Luís tinha 30 anos, o corpo magro, estatura média, olhos castanhos docemente lânguidos e encovados, cabelo escuro, pele clara, embora um pouco amarelada. Era frágil e não aparentava gozar de muita saúde. Estava casado há seis anos com Lúcia e tinham um filho de 4.
Era um indivíduo introvertido, inseguro, enclausurado nos seus pensamentos e medos. Chicoteado pela sua enorme falta de auto-estima, sentia cada dia da sua vida como um castigo divino; sempre que a atenção dos outros pousava em si – mesmo que casualmente – era porque o reputavam de imbecil, horroroso, palhaço. Tudo servia para se autoflagelar; considerava-se uma nódoa, alguém incapaz de despertar o interesse dos outros, uma nulidade. Um aborto. Apenas mais um erro da natureza.
Muitas vezes o assaltavam receios que lhe atormentavam o coração:
«Não entendo o que a Lúcia viu em mim! Não sou homem para ela. Sou feio, não tenho atributos físicos, salvo esta bela fileira de alvos dentes que brilha mais que a dentadura do Joly Jumper, não tenho dinheiro nem inteligência digna de realce. Não a trato bem! Não sou carinhoso. Sou amargo, amargurado, taciturno, capaz de passar o dia sem lhe dirigir palavra, como se ela não existisse! O mais provável é que venha a encontrar alguém que a mereça e me abandone. Também… com um marido assim, quem a poderá censurar? Eu não.»
Naquela época, Luís encontrava-se desempregado. Desde que casara já havia passado por três empregos. Em nenhum deles aguentou mais que um ano. Sempre que o despediam, entrava em casa com mal disfarçada tristeza e dizia:
– Acabou o contrato. Mandaram-me embora. Disseram que pretendem reduzir o numero de empregados, mas na realidade o que eles querem é alguém melhor que eu. Casaste com um falhado – sabia que os seus lamentos não comoviam a esposa. Sabia que lhe eram indiferentes, mas mesmo assim repetia-os como se de um ritual se tratasse.
– Só espero que não saias ao pai, meu filho – murmurava, enquanto afagava os caracóis castanhos do menino. – O mundo precisa de outro tipo de homens. Tu és bonito! Sais à tua mãe. As mulheres vão gostar de ti. Vais ser atraente e corajoso e não uma bosta como eu.
Lúcia já não suportava ouvir as suas lamúrias. Mantinha-se em silêncio, triste, cozinhando o casamento em lume brando e derramando todo o seu amor sobre o filho. Os dias aconteciam inexoráveis, só a alegria e as traquinices do pequeno Miguel aligeiravam o peso do fardo em que a sua vida se tornara. Para o menino canalizava todas as suas esperanças num futuro melhor.
O que Lúcia não sabia era que o Luís em todas as empresas onde trabalhara tudo fizera para que não lhe renovassem o contrato. Não porque fosse malandro ou incompetente, mas simplesmente porque não queria estar rodeado de outras pessoas! Não suportava os seus olhares! Acreditava que as pessoas o consideravam um bobo, um coitadinho digno de piedade. Embora não fosse gago, quando tinha que prestar contas a alguém ou sujeitar-se a qualquer tipo de avaliação, por vezes gaguejava um pouco.
Um dia, no último emprego, o seu chefe, irritado, dirigiu-se a ele num tom firme e severo:
– Porra, homem! Você parece que receia a própria sombra! Está com medo de quê? Despache-se lá, idiota. Faça o que lhe disse – fora a gota de água.
«Não sei se vou aguentar até o final do contrato. Neste momento já devem estar todos a falar de mim:
– Viste a cara dele? Além de palerma é dócil – dirá um.
– Mais parecia um cachorro, quando leva um raspanete do dono – comentará outro.
– Este gajo, além de cagarola, é mas é um complexado de alta competição – criticará um terceiro.
Se vou agora embora, a Lúcia não me perdoa. Meu Deus… faz com que os dias passem depressa! Tira-me daqui! Torna-me invisível.»
Suportar as oito horas de trabalho mortificava-o: directamente do ruído das máquinas para a sua cabeça viajavam adjectivos como cadavérico, desprezível, falhado, imbecil, e os seus colegas de trabalho eram pequenos monstros que por vezes se cruzavam com ele soltando um hálito quente da boca e faíscas do olhar.
Os dias sucederam-se penosos até a libertação final: o desemprego.
Todas as manhãs, por volta das 9 horas, levava o filho à avó e voltava a correr para casa. Se adivinhasse com quem iria partilhar aquela penosa viagem até o terceiro andar, jamais teria entrado, mas o destino não o quis retardar um minuto e assim teve que sofrer a humilhação de mostrar ao Sr. Afonso o seu lastimoso carácter.
Ainda não restabelecido do susto, dirigiu-se imediatamente para a secretária, que – estrategicamente colocada num canto do seu quarto – era onde melhor se sentia, o seu ninho, o seu pequeno mundo, o local em que sem constrangimentos podia dar asas ao seu verdadeiro eu.
Escrever era algo que gostava de fazer. Extenuado, sentou-se em frente de uma folha de papel branco, ligou o rádio e como habitualmente divagou por entre considerações diversas, flagelando-se com juízos de valor sobre si e sobre o mundo que aos poucos lhe dilaceravam o ser. Era na dor que encontrava a sensação de estar vivo; era da sua vontade de morrer, da sua incapacidade para suportar o ar que respirava, que retirava a certeza de existir. Sem a dor não era ninguém! Não passava de um pedaço de ar morno insípido a vaguear invisível pelo mundo, monotonamente escondido nas costas de alguém.
No dia anterior, ouvira José Rodrigues dos Santos noticiar:
«No Porto, um grupo de jovens, que habitualmente se dedica a perseguir e maltratar homossexuais que se prostituem na zona do Campo 24 de Agosto, espancou severamente um transexual. No dia seguinte, voltaram ao local do crime e, vendo que o homem estava morto, atiraram o corpo para um fosso. O mais velho dos jovens tem 16 anos.»
«Se em vez de brancos e do Porto, os jovens fossem negros e da Amadora, seriam, com certeza, anunciados como um bando ou um gangue.»
Fora o único pensamento que lhe ocorrera, enquanto saboreava um delicioso prato de bacalhau à espanhola que Lúcia havia preparado.
A insensibilidade com que recebera aquela grotesca notícia, a forma como o paladar do bacalhau se sobrepôs ao impacto de tão vil acto, fê-lo sentir-se fútil e abjecto. Ele que tantas vezes criticava o ser humano, que tantas vezes o sentenciava, afinal não passava de um falso pregador de monólogos sentimentalistas!
Apoderou-se de si uma sensação de sufoco, sentiu um nó na garganta e o coração começou a doer mais… mais que o habitual. Na sua cabeça, passou repetidamente uma frase que em tempos ouvira num disco de José Mário Branco:
«Mãe. Eu quero desnascer! Mãe. Eu quero desnascer!»
De imediato, como se de um acto redentor se tratasse, pegou na esferográfica e escreveu:

Queimam os pés no solo que pisam,
Ferem os ouvidos os sons do quotidiano,
Cegam os olhos pela luz e claridade,
Envelhecem os pulmões pelo ar que respiram.

Lateja o sangue nas veias,
Barragens prestes a transbordar.
Barragens são ideias
E o sangue não tem sol, terra, música e ar.

E a terra queima,
O som quotidiano fere,
A luz cega
O ar envelhece.

Olham para o espelho e ele reflecte
Um rosto nem triste, nem desfigurado. Amorfo.
Um corpo como seios descaídos. Inerte.
O espelho é um rio e a figura o lodo.

Meus irmãos!
Pedaços gémeos de mim.

Todos assim… sou Eu.

Quando de repente ouviu Heitor ladrar bem alto…

Heitor era um Husky siberiano de porte médio com uma pelagem acinzentada, macia e densa, mas que não ofuscava as suas linhas bem definidas. O pêlo na cauda e no peito era de um branco puro, que contrastava com o cinzento no resto do corpo, o que, em conjunto com uns fantásticos olhos azuis, lhe conferia uma aparência apelativa de rara beleza. O seu porte altivo, o seu olhar gelado e a sua semelhança com o lobo faziam ressaltar em si a necessidade de liberdade e de espaço onde pudesse exibir todo o seu fulgor e energia.
O som vinha de fora do quarto e não parava. Era persistente e incomodativo, no entanto, teve o condão de interromper temporariamente o seu sofrimento. Dirigiu-se até a varanda, onde se deparou com uma cena no mínimo preocupante. Heitor estava apoiado sobre duas patas, com o corpo debruçado sobre o parapeito da varanda do quarto andar e, apesar de não o estar a conseguir, fazia um enorme esforço no sentido de subir até o topo.
Luís olhou para o cão e, receoso que este caísse, disse-lhe aflito:
– Vai para dentro. Olha que ainda cais lá abaixo. Podes morrer, Heitor, podes morrer.
O animal pareceu ter entendido, porque deixou de estar à vista, no entanto, Luís ouvia-o caminhar energeticamente de um lado para o outro, como se estivesse irritado, e, por vezes, também escutava o ruído das patas a arranhar na persiana. Nervoso, voltou a ladrar insistentemente enquanto uma vez mais se esfarrapava todo para tentar subir ao parapeito.
– Não faças isso bichinho. Pára. Olha que te vais magoar. Vá, olha para mim. Fala comigo – Luís fazia o que podia para o distrair.
– Tu não és um pássaro. Não vais conseguir voar.
Entretanto, na rádio começara a tocar uma canção dos Coldplay, que, curiosamente, teve o condão de acalmar Heitor. Fez-se silêncio.
«Provavelmente adormeceu» – pensou o Luís com um leve sorriso nos lábios.
Não conseguia entender como é que o Sr. Afonso era capaz de deixar Heitor preso num espaço tão exíguo.
Extenuado, entrou no quarto, deitou-se na cama e adormeceu. Já não tinha forças para pensar.
Quando acordou, passava das duas horas da tarde. Levantou-se meio ensonado e dirigiu-se à varanda para verificar se Heitor ainda lá estava preso. Felizmente não. A persiana estava subida, o Sr. Afonso já tinha voltado.
Impressionou-o bastante que aquele fantástico animal estivesse decidido a atirar-se de um quarto andar para a rua só para ser livre. Sem dúvida que uma varanda com cerca de dois metros e meio de largura por um de comprimento não era um local digno de tão nobre cão.
Há muito tempo que Luís vinha cristalizando em si uma ideia perversa que a ânsia de liberdade de Heitor ajudara a catalisar. Detestava-se! Não conseguia conviver consigo próprio nem com os outros! Sentia-se asfixiar na teia que o cérebro lhe montara. Para quê viver? Pelo Miguel? Amava o filho, mas estava certo que um dia mais tarde ele viria a ter vergonha do pai, sentia horror por isso. Pela Lúcia? Não. Lúcia merecia ser feliz! Merecia alguém melhor.
Naquele momento, não era mais que o escravo submisso de um cérebro poderoso e doentio, capaz de absorver e transformar o exterior em finas lâminas incandescentes que o queimavam e empurravam rumo ao suicídio.
Eram já cinco horas da tarde, foi à sala, pegou numa garrafa de uísque, encheu um copo e depois outro e outro e outro…
«Lúcia, não faças de comer para mim. Hoje chego tarde.»
Deixou o recado em cima da mesa da cozinha. Assim… sem mais.
Vestiu o fato-de-treino, o blusão, calçou as sapatilhas, bebeu mais um copo e saiu. Dirigiu-se vagarosamente para a marginal do rio Douro. Ainda era cerca de uma hora a pé. Tinha que fazer o tempo passar, não estava suficientemente escuro. No caminho, entrou no Torrado e tomou um café e um bagaço. Adorava café! Pediu mais um e saboreou-o até a última gota.
Já estava escuro, mas àquela hora muita gente regressava dos seus empregos. Era melhor esperar um pouco mais. Nessa altura já estariam todos a jantar.
Desceu até a margem do rio, sentou-se na areia e olhou para o céu. A lua infantilmente pálida e redonda iluminou o seu rosto com um sorriso triste.
A água reflectia a luz dos candeeiros da estrada; colunas de luz, paralelas, iluminavam o rio, indicando a Luís o caminho a percorrer. O destino era já ali, o fim estava a meia dúzia de passos. O seu fim! Escolhido por si, exclusivamente seu: frio, molhado, negro!
Tirou o blusão, as sapatilhas, o fato de treino e toda roupa interior. Nu e com os olhos marejados em lágrimas, entrou na água decidido a caminhar até que esta lhe inundasse os pulmões. Passo atrás de passo, cadenciadamente, foi afundando o corpo rio adentro. Já com a água pelo pescoço deu mais dois passos, ficou tapado e sem respirar. Continuou a sua caminhada, firme e determinado. Mais um passo e engoliu o primeiro gole. Só mais um e seria o fim… finalmente! Avançou, porém, em vez de descer, subiu um montinho de areia e depois outro e outro, o fundo do rio não era regular, começava a subir, de repente encontrava-se de novo com a cabeça à superfície. Respirava fundo, ganhava coragem para um novo impulso, quando ouviu, vindo da margem, o som de um cão a ladrar.
Conhecia aquela latir! Voltou a cabeça e viu aqueles belos olhos azuis apontados para si. Heitor, sempre a ladrar, atirou-se e nadou na direcção do Luís, que caminhou ao seu encontro. Quando se encontraram, ficaram imóveis, olhando-se fixamente em silêncio como duas estátuas retiradas em segredo do fundo do rio. Pela primeira vez Luís não tinha medo!
Voltaram para a margem e sentaram-se na areia, esgotados. Ainda nu, Luís encostou o seu rosto no focinho molhado de Heitor e abraçou-o. Com as calças do fato-de-treino enxugou os seus corpos e depois seguiram para a estrada.
«Como é que ele veio aqui parar?»
– Estás sozinho? Que é feito do teu dono?
Não demorou muito tempo a encontrar a resposta. Ao longe, ouvia-se a voz do Sr. Afonso a chamar por Heitor, que de imediato correu em sua direcção.
Jovens casais costumavam namorar numa zona mais resguardada da marginal, cerca de quinhentos metros à frente do local onde se encontrava. Enquanto o Sr. Afonso asquerosamente espiava a intimidade dos outros, o instinto de liberdade de Heitor fizera-o galgar pela margem do rio até si.
Já era quase meia-noite, quando entrou em casa. Lúcia contemplou-o com um olhar inquiridor.
– Fui passear até a beira do rio, apareceu um cão que começou a rosnar e atirou-se a mim. Para fugir dele, atirei-me à água. Fiquei lá imenso tempo até que ele fosse embora.
– Não me digas que o cão pertencia a algum casal que estava a namorar – a resposta saiu curta, fria e cortante.
Lúcia sentia que, além do amor estar a desaparecer, também o respeito diminuía.
Na manhã seguinte, Luís foi tomar um café à confeitaria onde habitualmente comprava o pão. No canto do balcão, acompanhado por dois copos de Martini com cerveja, um vazio e outro meio, o Sr. Afonso resmungava entre dentes para o parceiro do lado:
– Vêm estes bêbados para aqui trabalhar por tuta-e-meia. Depois os portugueses ficam sem emprego. Se eu mandasse, iam todos para a Sibéria plantar batatas – referia-se a um indivíduo, alto, loiro, de olhos azuis, que atravessava a rua em direcção à confeitaria.
– Bom dia. Favor cope lete e bolo – pediu, com um sorriso afável.
Luís voltou para casa a pensar na simpatia do imigrante em contraste com o preconceito do Sr. Afonso. Ao chegar à entrada do prédio, viu Heitor debruçado sobre a varanda.
– Desce daí, Heitor. Sai daí. Não faças isso – pressentia o pior.
Colocou a chave na fechadura, abriu a porta apressado, olhou para os elevadores e verificou que estavam no quinto, não havia tempo. Subiu as escadas a correr com toda a força que tinha. Esbaforido, entrou dentro de casa e dirigiu-se imediatamente para a varanda. Preocupado, olhou para o cão, que incrivelmente já tinha todo o seu corpo balanceando sobre o parapeito.
– Não. Heitor, não. Por favor! – gritou Luís ofegante
Desta vez não o ouviu. Imponente, lançou-se no vazio tentando a sua sorte. Só queria ser livre. Recusava-se a estar preso.
Luís lançou-se numa louca correria escada abaixo, até chegar à estrada junto de Heitor, que já se encontrava rodeado de pessoas que presenciaram a sua queda. Estava imóvel, com as pernas partidas, os olhos abertos e um fio de sangue a escorrer do canto da boca. Minutos depois, chegava o Sr. Afonso, que se ajoelhou junto de Heitor. Este soltou um gemido e fechou os olhos definitivamente. Esperara o dono chegar para lançar o último suspiro.
Luís sentiu uma enorme tristeza, acompanhada de uma raiva surda que jamais sentira e o compelia a vingar a morte do seu querido amigo. Para si, o culpado tinha um nome: Afonso.
Naquela noite subiu um andar e tocou na campainha. Tremia de medo, mas estava determinado, não podia falhar. Sabia que ele estava em casa, tocou uma vez mais, enquanto repetia mentalmente o plano que havia delineado. A porta abriu-se e diante de si surgiu um homem triste e cansado.
– Eu sei que não é boa altura, mas acontece que está a pingar no tecto da minha cozinha e talvez tenha a ver com a sua máquina de lavar ou com a banca. Não sei ao certo. Posso entrar?
– Faça o favor de entrar, Sr. Luís. Penso que na minha cozinha está tudo bem, mas entre, entre.
Luís entrou… aterrorizado. Lembrou-se de Heitor no rio, do fio de sangue e da sua altivez. Seguiu em frente, a sua mão, como uma tenaz, apertava com força o cabo de uma faca serrilhada que levava no bolso.
«Está quase! Só tenho que o pôr a jeito e fazê-lo pagar pelo que fez.»
– Vê, não tenho água no chão. Está tudo seco.
– Para ter a certeza, devíamos arrastar a máquina – disse Luís, na esperança de que ele se virasse de costas e pegasse nela.
– Tudo bem. Pegue desse lado, que eu pego deste.
Ficaram lado a lado, conjugando a sua força para levantar a máquina. Logicamente estava tudo seco, esfumava-se a oportunidade e com ela a coragem que arranjara para cometer o crime que planeara.
Ao passar junto à porta da sala, viu colocado na chaminé da lareira alguns pequenos quadros com fotografias, que lhe despertaram a atenção.
– Posso ver? – perguntou apontando para a lareira.
– Entre. Faça o favor.
Numa fotografia, Heitor estava sentado ao lado de um belo menino com cabelo castanho encaracolado e uns enormes olhos verdes. Noutra, estavam os dois mais o Sr. Afonso – que nem parecia o mesmo de tão elegante e bem vestido – e uma linda mulher, que só podia ser a mãe do menino.
– Perdi-os num acidente de automóvel. Já passaram seis anos, mas parece que foi ontem – uma lágrima de tristeza deslizava abandonada pelo canto do olho –, só eu e Heitor sobrevivemos. Agora foi ele, nunca imaginei que isto fosse acontecer. A minha esposa era professora de História e eu de Educação Física. Demos-lhe o nome de Heitor em homenagem ao nobre guerreiro que comandava o exército de Tróia.
– Desculpe o incómodo, Sr. Afonso – disse Luís visivelmente comovido.
«Como a vida pode transformar um homem!» – pensou… envergonhado com a sua mesquinhez.
A dimensão da tragédia vivida pelo seu vizinho reduzia os seus traumas à insignificância. Se existia alguém com motivos para não querer viver era o Afonso, não ele. Ele tinha tudo para ser feliz, não podia destruir essa possibilidade.
Desceu as escadas, entrou em casa, beijou Lúcia carinhosamente e disse:
– Preciso de ajuda, antes que seja tarde de mais. Amanhã mesmo vou procurar um psicólogo que me livre desta angústia em que vivo. Vamos ser felizes, Lúcia!
Esta é a história de um paciente e amigo que muito estimo, que um dia irrompeu pelo meu consultório, dizendo desesperado:
– Sr. Doutor, sei que não tenho consulta marcada e que o senhor não me conhece, mas eu não quero morrer. Quero ser feliz! Viva Heitor!

A INSULA FRATINA

O dia estava simplesmente esplendoroso. André Calisto estacionou o seu jipe Terrano no parque de estacionamento junto à praia.
Decidiu passar o sábado sozinho, longe de tudo e de todos, depois de uma semana de trabalho para esquecer. A sua promoção a chefe do departamento de informática da empresa onde trabalha há dez anos, por nomeação da administração, tinha caído como uma bomba. Das felicitações sinceras de alguns colegas até aos sorrisos amarelos de outros, teve de tudo. Sabia que tinha uma longa tarefa pela frente – conseguir o apoio dos colegas para os projectos que a administração lhe propôs não ia ser fácil. Mas sobre isso pensaria na segunda-feira, hoje, o mar seria o único desafio a enfrentar. O windsurf era a sua paixão desde muito jovem e, apesar de já ter ultrapassado os 35 anos, continuava a ser a única coisa que verdadeiramente o descontraía. Estendeu a toalha na areia, longe das pessoas, e colocou a prancha de windsurf ao lado; ainda não estava na altura de entrar na água, o mar ainda não reunia as condições mínimas para a prática.
O vento batia na vela, afastando a prancha do areal. Com grande perícia e aproveitando a direcção do vento, conduzia-a ao longo da praia, passando por alguns colegas que denunciavam falta de experiência. Rumou em direcção a uns penedos, que a espaços eram lambidos pelas ondas, fazendo levantar em pequenos voos umas gaivotas que os povoavam. Passou-os a uma velocidade apreciável, dirigindo-se para o mar alto. Quando desejou fazer uma volta de retorno, a prancha incompreensivelmente não obedeceu. Fez uma nova tentativa que não resultou, largou as mãos da retranca, a vela caiu e a prancha parou, assim como o vento. O silêncio era a única coisa que se ouvia.
André Calisto olhou para o céu e uma névoa caía sobre o oceano. Num ápice foi absorvido por ela como se fosse um manto atirado do espaço infinito. Não conseguia ver um palmo à frente do nariz. De repente o vento voltou, tornando-se cada vez mais forte. André levantou a vela e a prancha disparou a alta velocidade em direcção desconhecida. No meio da névoa sentiu-se perdido. Não sabe quanto tempo permaneceu envolto nela. Lentamente ela foi desaparecendo e o sol reapareceu.
A paisagem que agora tinha diante dos olhos era diferente da praia de onde saíra. Era uma praia de areia branca de águas límpidas, via-se o fundo do mar recheado de corais e peixes coloridos de uma beleza indescritível. Várias modalidades aquáticas polvilhavam as águas junto à praia. No areal alguns corpos seminus bronzeavam-se e os bares de apoio impecavelmente bem arranjados tinham alguns clientes. As pessoas, distraídas no gozo daquele sensacional dia, não deram pela chegada dele. O local era paradisíaco. André estava estupefacto, nunca tinha ouvido falar da existência daquele local. Dirigiu-se para a praia, pegou na prancha e arrastou-a para a areia seca. Olhou à sua volta e apercebeu-se que falavam uma língua estranha. Falava fluentemente inglês e francês, arranhava o alemão e tinha conhecimentos, apesar de limitados, de italiano e, claro, de castelhano, mas não era nenhuma destas línguas. Nos locais que frequentava à beira-mar havia sempre muitos estrangeiros, mas existiam sempre portugueses, mas ali mesmo os empregados dos bares falavam aquela estranha língua.
Aproximou-se de um grupo de jovens e perguntou:
– You speak english?
Olharam para ele espantados e não responderam.
– Vous parlez français? – insistiu.
– Alilanda? – perguntaram num misto de curiosidade e medo.
– Sei lá! Falem numa língua que eu entenda – expressou-se em português, na esperança remota de uma resposta.
Mas a resposta foi um virar de costas e uns sorrisos pouco simpáticos.
André Calisto aproximou-se de uma avenida marginal que bordejava a praia e onde morria o areal.
– Can I help you? – perguntou um senhor, de boa aparência, elegantemente vestido e que aparentava ter uns 80 anos.
– Where am I? – perguntou André.
– What language do you speak? – respondeu o velho com uma pergunta.
– Português!
– Português? – disse numa correcta pronúncia da língua de Camões.
– Ainda bem que encontro alguém que me compreende. Mas onde é que eu estou?
– Na Insula Fratina, ou melhor, em português, a Ilha Fraternal.
– Nunca ouvi falar de tal sítio – respondeu admirado.
– Não duvido.
– Mas onde fica esta ilha? Que língua se fala aqui?
– Esta ilha fica algures num oceano, a latitude e longitude, não me lembro, se é que algum dia soube. A língua oficial é o esperanto, já ouviu falar dela?
– Sim, mas não como língua oficial. E como se chama este local? Esta praia? E esta avenida onde vai dar?
– Você está na capital, Prosperi. Esta praia é a plago Hundo, e esta avenida é a Aleo Apudamara, que vai dar ao centro da cidade – respondeu o velho prontamente.
– Desculpe, o senhor quem é?… Como se chama?
– Chamo-me Petro. Sou um zorgisto.
– Zorgisto?
– Traduzindo para português, zelador. É natural que tenha curiosidade de conhecer algo sobre este local extraordinário, ímpar no mundo, onde toda a gente gostaria de viver, mas infelizmente essa felicidade só é privilégio de alguns.
– Não será exagero o que está a dizer? – perguntou sarcasticamente.
– Vou-lhe fornecer alguns dados sobre a ilha e depois dirá se de onde veio se lhe compara.
– Estou mesmo curioso.
Petro convidou André a sentar-se num dos bancos existentes na praia. André ficou admirado pelo facto de o velho não lhe ter feito perguntas acerca de como é que ele foi ali parar, talvez já o soubesse ou não era ainda o momento oportuno, isso preocupou-o.
– Esta ilha tem mais ou menos as dimensões e a população da Irlanda, mas com características completamente diferentes. No norte temos montanhas, que são o nosso reservatório natural de água. No sul temos belas praias e nas suas águas reservas de peixe suficientes para alimentar a população da ilha. Rebanhos de gado bovino, ovino e caprino pastam nas belas planícies do centro. O sol brilha 300 dias por ano, com uma temperatura média de 25º. Politicamente somos uma república etocrática, os partioj politikoj, representados na Kunsido Nacia, assentam os seus programas políticos, essencial e quase exclusivamente, na fruição dos bens públicos e das melhores perspectivas do ócio. A economia e as finanças estão devidamente estabilizadas e programadas.
» De dez em dez anos, os partioj politikoj fazem uma plataforma de entendimento e escolhem um primo-ministro, que recruta dentro dos partidos as personalidades que entende serem as mais competentes para a formação de um regado de unidade nacional.
» Eu pertenço à Direktoro Eminentularo, ou seja, é uma entidade suprapartidária que preserva a integridade do país e zela para que a ordem e a segurança não sejam postas em causa por forças internas ou eventualmente externas; como lhe disse, eu sou um zorgisto.
» Os transportes são grátis, assim como a saúde, o ensino e os espectáculos. Temos 0% de desemprego, toda a gente tem habitação, não temos analfabetos, 50% da população tem curso superior e o crescimento económico é de 15%. Somos totalmente auto-suficientes, não necessitamos do mundo exterior. As energias são não poluentes, energias renováveis: eólica, solar, de marés, de hidrogénio e gás natural. Temos da melhor e da mais moderna tecnologia, estamos sempre actualizados com o melhor que se faz nos outros países, temos técnicos altamente qualificados.
» Na Insula Fratina não há roubos, não há droga, não há alcoolismo, o tabaco há muito que foi abolido e desconhece-se a palavra «sida». O trânsito automóvel é fluente, as transgressões de trânsito, quando existem, são denunciadas pelos próprios infractores, que pagam voluntariamente as coimas. Por tudo isto, os polícoj são funcionários que normalmente trabalham noutras funções na Komunumo. Curiosamente, este ano houve um caso em que a polico teve que intervir, por ordem do tribunalo, relativamente a um indivíduo que abusivamente se apossou de segredos de estado sabendo que colocava em causa a segurança dos seus concidadãos. Quando foi interceptado acusou que o Regado lhe estava a cercear a sua liberdade e direito ao conhecimento. O tribunalo verificou que não era disso que se tratava e o indivíduo, como estava a ser um caso problemático, foi, por ordem do mesmo, internado numa kliniko para ser submetido a um desmemoriamento, ou seja, estripar da memória o problema que o desestabilizava. Havia muito mais para lhe dizer, só que não o quero aborrecer, mas estou disponível para qualquer pergunta que queira fazer.

André ficou perplexo com o relato de Petro, não sabia se o relato fora pura publicidade ou era um aviso. Achou melhor não colocar qualquer questão. Não sabia qual era o seu estatuto: náufrago, espião, reaccionário ou um indivíduo predestinado a uma das tais kliniko.
– O senhor disse que eram uma república etocrática. Mas isso é uma forma de governação baseada nos usos, tradições e regras de conduta reconhecidos pela população, não passando de uma teoria académica.
– Que nós passámos à prática. O governo deste país rege-se por princípios definidos há muito tempo pelos nossos antepassados e que só podem ser alteradas pela Direktoro Eminentularo.
André pensou que estava a lidar com um louco. O velho leu-lhe o pensamento e disse:
– Não pense que sou louco. Vou demonstrar-lhe o que disse.
Dirigiram-se a uma tenda que vendia vestuário. Petro disse-lhe para escolher uma t-shirt, uns jeans e uns sapatos para se deslocarem até ao centro e pagou-lhe as compras com uma espécie de cartão de crédito. Entraram num moderno metro de superfície, que parara perto do sítio onde estavam; não pagaram bilhete. Foram até ao centro passando por diversos edifícios de um material semelhante ao vidro e que lhe pareceram públicos. Fixou os nomes de alguns deles: Malsanulejo, Kuriero, Pumpistejo, Benko Stata, Muzeo Nacia, Kinejo Mondo, podiam dar-lhe jeito no regresso.
A cidade era aberta, o centro situava-se na confluência de várias e bem delineadas avenidas, impecavelmente limpas. Vários gardenoj, baptizados com nomes curiosos como Felico, Harmonio e Paco, que Petro fez questão de ir traduzindo, estavam cheios de flores e de pessoas, especialmente crianças que brincavam vigiadas pelos pais ou avós. À volta destes jardins, proliferavam pequenas, mas várias, kafkruco, onde pessoas de todas as idades conversavam ou liam saboreando um café ou uma outra bebida. Encaminharam-se para um edifício de estilo avançado, que nunca tinha visto e que transbordava de gente. Na porta de entrada tinha uma placa com os dizeres: «Operejo». Um som melodioso anunciava que o espectáculo ia começar. Petro disse-me que o espectáculo era grátis. Do outro lado da Placo Zamenhof existia um outro edifício de linhas também muito avançadas com um formato que parecia indicar ser um pavilhão para prática desportiva; efectivamente era um Pavilono e decorria um jogo muito apreciado de piedpilko de salono, a entrada também era grátis. Depois percorreram uma avenida cheia de belas casas, com belos jardins e as portas, quando existiam, não tinham fechaduras. Durante este giro pela cidade, André não vislumbrou nenhuma autoridade.
Em seguida, foram a um edifício todo espelhado e com luzes de néon, que dizia tratar-se da Societo Filamentoro. Petro cumprimentou o porteiro e perguntou por alguém, e foi-lhe indicado o local onde o poderia encontrar. Numa sala esfuziante de beleza e bem-estar Petro encontrou a pessoa que pretendia. Era um jovem que lhe foi apresentado.
– Karlo, apresento-te o…
– André Calisto.
– Gostava que acompanhasses o André.
E, virando-se para o André, disse:
– Karlo também fala português.
O jovem Karlo sorriu e abanou a cabeça afirmativamente.
– Quando é que eu poderei regressar? – perguntou André.
– Não sei. Tenho que analisar com os meus superiores o seu caso. O André trabalha em quê? – perguntou Petro.
– Sou licenciado em Informática.
– Óptimo. É uma área que falta no país. Não quer ficar cá a trabalhar?
– Não sei se estou interessado – atreveu-se a responder.
– Com certeza. Eu vou tratar do seu assunto – disse Petro sorrindo.
A saída do velho da sala prendia-se com a solução a dar ao seu caso.
Karlo convidou André a sentar-se num sofá. Perguntou-lhe se queria beber alguma coisa, André disse que tomava um café. Foram servidos por um robot.
Sentiu-se mais à vontade com Karlo e dispôs-se a encetar uma conversa para saber algo mais da ilha.
– Para além da língua oficial, o esperanto, a população fala outra língua?
– Não. Alguns de nós falamos outras línguas mas estamos autorizados pela Direktoro Eminentularo.
– Qual a razão de vocês falarem esperanto? – perguntou.
– Os primeiros habitantes da ilha eram de várias nacionalidades que entraram em conflito por causa da língua, foi por isso que a Direktoro Eminentularo decidiu adoptar o esperanto como língua oficial por ser uma língua da fraternidade.
– Falando somente esperanto e não tendo acesso a outras línguas, a população não tem acesso a outros conhecimentos a não ser aqueles que vocês entenderem fornecer. O povo está nas vossas mãos. Não será assim? – questionou André.
– De modo algum. O povo é livre – disse Karlo, denunciando uma certa irritação.
André tinha um conhecimento muito elementar do esperanto, mas não tinha dúvidas que a língua inventada por Zamenhof fora construída com um objectivo de unir os povos e ali, naquela ilha, tinha sido pervertida ao ponto de ser um instrumento de opressão, ao serviço de uma cognominada «elite etocrática», disso já não lhe restavam dúvidas. Zamenhof fora traído nos seus propósitos.
André Calisto olhou à sua volta e apercebeu-se quanto aquele lugar era agradável. Karlo explicou que aquele edifício era inteligente. A climatização, a iluminação, a música ambiente, as persianas, os próprios sofás, eram geridos por computadores de modo a criarem um bem-estar aos seus utilizadores. Como estes edifícios há centenas espalhados pela ilha, explicou Karlo.
– O Karlo em que trabalha?
– Sou licenciado em Literatura. Dedico-me a traduzir para esperanto obras clássicas. A Ilíada e a Odisseia, de Homero, foram as minhas últimas traduções. Agora estou a traduzir…veja se reconhece?
Karlo passou a mão sobre o tampo da mesa que estava colocada à frente deles e um ecrã policromático acendeu. Apareceu um texto em esperanto e André começou a ler:

La farojn kaj la virojn multmeritajn,
El okcidenta plago luzitana,
La marojn ne ankorau navigitajn
Pasinte, transe ec de Trapobana;
En lukto kaj dangervenkintojn spitajn,
Kun forto superhoma kaj titana;
Kiuj Konstruis en la malproksimo
Reglandon, kondukitan al sublimo.

– Mas isto são Os Lusíadas, de Camões! – disse André admirado.
– Como vê, apesar de não saber esperanto, o André identificou o texto. Esta é a beleza da nossa língua. O escritor Tolstoi dizia que aprendeu a ler esperanto em duas horas. É uma língua que une as pessoas, como dizia o mestre Zamenhof.
– Mas como é possível a ilha não ser conhecida? – disse André.
– Efectivamente a ilha não é conhecida. A Direktoro Eminentularo decidiu que a ilha não devia ser conspurcada com os males do vosso mundo. Temos uma tecnologia de ponta que evita que satélites, meios áudios, aviões ou barcos se apercebam da sua existência; chamam-se «camufladores» e estão espalhados por toda a ilha.
– E quando alguém, como eu, casualmente, aporta à ilha? – perguntou André.
– Penso que o André foi o primeiro – disse Karlo.
André notou pela maneira que se referiu ao acontecimento que Karlo estava a fugir à verdade. André sentiu que algo ia correr menos bem, ou mesmo mal. Apesar das dúvidas que iam aumentando, André atreveu-se a perguntar:
– O Sr. Petro disse que era um zorgisto e que zelava pela segurança interna e externa da ilha, presumo que têm problemas.
– Alguns, mas muito poucos.
– E a contestação é política? – perguntou André.
– Não – disse categoricamente
– Não compreendo – reforçou André.
– Aqui na ilha, recebemos do exterior, via satélite, toda a comunicação do planeta. Há uma entidade, a Esteco Regulanta, que selecciona as notícias, e somente essas é que são divulgadas aos cidadãos, via rádio, imprensa ou televisão por cabo.
– E o Karlo diz que o povo é livre? Curioso! – atreveu-se a dizer.
Karlo ignorou a ironia e continuou:
– Contudo, há indivíduos ligados aos meios de recepção que, influenciados por notícias do exterior, contestam a entidade.
– E quando isso acontece? – afrontou André.
– Há males que têm de ser extirpados logo à nascença para o bem-estar do nosso povo. Esses indivíduos estão doentes, e, como tal, têm que ser tratados, por isso temos klinicoj para serem recuperados.
Mais uma vez a referência às clínicas de recuperação, pensou André.
– E você diz que há liberdade! Esta gente não é livre, está condicionada a um grupo bastante restrito que decide por eles o que é bom e o que é mau. Não tendo acesso ao mundo exterior, estão presos na ilha, que curiosamente se chama fraternal. Já conheci, num passado recente, sociedades semelhantes a esta e que o povo rejeitou. Não vos dou grande futuro, mais tarde ou mais cedo, vocês vão ter grandes problemas – disse André, consciente de que, com o que estava a dizer, a sua situação poderia piorar.
Karlo ficou pensativo por alguns momentos.
– A Direktoro Eminentularo prevê que o vosso mundo vai entrar numa guerra global e somente a Insula Fratina escapará ao morticínio – disse Karlo com uma voz já alterada, e em esperanto exprimiu o seu pensamento com uma frase plena de convicção: «La malbono faras doloron kaj ne la bono», que traduziu: «O mal faz a dor, e o bem não faz a dor».
Karlo convidou André a dar uma volta pela cidade. Utilizaram um pequeno veículo movido a energia solar de aspecto invulgar.
Na cabeça de André afloraram muitas questões, mas estava receoso de colocá-las a Karlo. A curiosidade sobrepôs-se irresistivelmente.
– Karlo, com o nível cultural que tem a população, é natural que sejam curiosos acerca do mundo exterior. Não acredito que pensem que estão sozinhos no planeta.
– Claro! Há uma quantidade de pessoas, mas é mínima, que questiona. Mas a vida que lhes é proporcionada ultrapassa de longe a curiosidade de conhecer esse mundo exterior.
– A curiosidade é inerente à raça humana, não acha?
– O André vive, de certeza, num local que lhe proporciona uma boa qualidade de vida e de que gosta?
– Sim.
– Se lhe mostrassem um local para onde o convidassem para ir viver em que a poluição, as guerras e a degradação humana fossem uma constante, o André que diria?
– Que não estava interessado, mas…
– É isso que fazemos ver aos poucos cidadãos quando levantam essas questões.
Karlo não deixou André replicar.
Karlo deixou André no Hotelo Karaktero no centro da cidade mesmo ao lado do rio Rivero Mildo. Disse-lhe que no dia seguinte voltaria de manhã cedo para o levar para a Societo.
No quarto que lhe foi destinado encontrou no armário roupa à sua medida. Enquanto esperava pela hora de jantar aproveitou para ver TV e percebeu, apesar de não saber esperanto, aquilo que lhe tinham dito: as notícias eram controladas, o mundo exterior pouco ou nada se falava, só se referiam ao que se passava na ilha. Desceu para jantar. Depois da refeição passou pela recepção e saiu para a rua. Um indivíduo estava sentado num banco do outro lado da rua a ler um jornal, numa situação típica de vigia. Pensou que se começasse a andar o indivíduo iria atrás dele; desistiu de criar mais problemas.
Regressou ao quarto e analisou a sua situação. Nunca se tinha interessado por política, considerava os políticos maquiavélicos, não olhavam a meios para atingir os fins, e curiosamente passou o dia a falar de política e a contestar o modelo político-social daquela ilha. Até falou de liberdade, e no seu pensamento desfilaram imagens dos seus ascendentes a falarem das perseguições políticas, das prisões e das torturas que alguns deles e amigos foram alvos no antigo regime, em defesa da liberdade. André nunca tinha pensado verdadeiramente nisso, mas agora, perante a situação que estava a viver, essa palavra tinha um significado que jamais pensara.
Por volta das 9 horas já Karlo o esperava no átrio do hotel; André não tinha dúvidas que estava a ser alvo de forte vigilância, a sua liberdade estava ameaçada. Tinha que tomar uma decisão, mas não sabia o quê. O reencontro com Petro previa-se de consequências imprevisíveis.
Perguntou a Karlo se era possível irem até à praia apanhar um pouco de sol. Karlo pegou num telemóvel e em esperanto perguntou a alguém se podia satisfazer pedido de André. A resposta foi positiva e Karlo levou-o até à praia no veículo que no dia anterior utilizaram.
O veículo parou no estacionamento, aproximaram-se da entrada da praia, a mesma que já conhecia, sentou-se no muro, despiu-se e ficou em calções, como quem tenciona deitar-se e apanhar um pouco de sol. Karlo não fez qualquer comentário e sentou-se num banco.
O areal não estava com muita gente, alguns surfistas exibiam as suas capacidades nas cristas das ondas, o mar estava brilhante e uma leve brisa percorria a praia. Um grupo de jovens falava animadamente junto à orla marítima com pranchas de windsurf repousadas na areia.
André olhou para um lado e para outro, levantou-se, dirigiu-se lentamente em direcção ao mar. Já relativamente perto da água começou a correr, dirigiu-se ao local onde estavam as pranchas, pegou numa e entrou no mar. Ultrapassou a rebentação, saltou para a prancha, levantou a vela e começou a velejar.
Perante o inesperado e o facto de não saberem o que era um roubo, os jovens não reagiram. Karlo percebeu, de imediato, que André ia tentar a fuga. Pegou no telemóvel e comunicou o sucedido. Gesticulou para uns indivíduos que se encontravam junto ao mar e devido à sinalética efectuada saltaram para umas motos de água, ali estacionadas, e saíram no seu encalço. Contudo, este espaço de tempo deu uma vantagem razoável a André.
André Calisto distanciou-se rapidamente da beira-mar em direcção ao mar alto. Passou por alguns barcos de recreio e procurava, desesperadamente, aquela névoa que o tinha atirado para aquelas paragens. Esta subitamente apareceu vinda do céu, como um manto caindo sobre ele com toda a sua espessura. André ouvia as motas de água aproximarem-se e continuou na sua fuga. A névoa espessou cada vez mais. O vento enchia a vela e a prancha a toda a brida dirigia-se com destino desconhecido. Só o barulho das motas chegava aos seus ouvidos, em sons entrecortados, o que significava que andavam aos ziguezagues à sua procura. Não sabe quanto tempo andou assim. André deixou de ouvir as motas de água, a névoa desapareceu quase instantaneamente e o sol ressurgiu com toda a sua pujança. André avistou uma embarcação e sentiu que era a sua salvação. Foi-se aproximando e cada vez melhor identificava a sua natureza; era uma traineira igual às muitas que enchem os portos piscatórios portugueses. Deus te Guie era o nome pintado toscamente a azul na proa.
– Ó da traineira! – gritou
– O amigo precisa de ajuda? – disse um homem vestido com uma camisa axadrezada.
– Sim, estou a fugir daquela ilha, estou a ser perseguido.
– Ilha? Mas que ilha? – perguntou o pescador.
– Aquela ali no horizonte – André apontou para o horizonte.
– Ilha? Ali o que você vê é Leça. O farol que vê à esquerda é o da Boa Nova e mais ao lado é a PETROGAL. Por aqui não existe ilha alguma, o amigo deve ter apanhado sol a mais. Mas suba que nós levamo-lo para terra. André subiu e os pescadores ajudaram a içar a prancha.
Encostado à cabina da traineira, observava o azul-escuro do mar e aquela costa recortada e foi identificando todos os locais. Mas como era possível ter saído de uma ilha que não existia? Falou com pessoas que se exprimiam em esperanto, participou da vida da ilha e, se não fosse as dúvidas sobre o que presenciou, até talvez tivesse ficado por lá. Agora, como por artes mágicas, a ilha desaparecera… ou nunca teria existido? Curioso é que a prancha de windsurf que roubou na praia era a sua prancha que tinha abandonado quando aportou à ilha.
Tudo isto teria sido fruto da sua imaginação de um sonho ou quiçá de uma experiência metafísica?
André Calisto voltou várias vezes à sua praia. Continuou a praticar o seu desporto favorito, mas nunca mais viu a tal névoa que um dia o levou para uma experiência inolvidável, assustadora?, maravilhosa?, no mínimo fantástica.


Glossário esperanto-português

Aleo – avenida.
Alilanda – estrangeiro.
Apudamara – marítima.
Benko Stata – Banco Nacional.
Direktoro Eminentularo – Suprema Elite.
Esteco Regulanta – Entidade Reguladora.
Felico – feliz.
Filamentoro – filantrópica.
Fratina – fraternal.
Gardenoj – jardins.
Harmonio – harmonia.
Hotelo – hotel.
Hundo – cão.
Insula – ilha.
Malsanulejo – hospital.
Mildo – manso.
Mondo – mundial.
Malsanulejo – hospital.
Mildo – manso.
Muzeo Nacia – Museu Nacional.
Operejo – ópera.
Paco – paz.
Partioj politikoj – partidos políticos.
Pavilono – pavilhão.
Piedpilko de salono – Futsal.
Placo – praça.
Plago – praia.
Polico – polícia.
Policoj
polícias.
Primo-ministro – Primeiro Ministro.
Prosperi – prosperidade.
Pumpistejo – bombeiros.
Regado – governo.
Rivero – rio.
Salono – salão.
Societo – sociedade.
Kafkruco – cafeteria.
Karaktero – natureza.
Klinico – clínica.
klinicoj - Clínicas.
Komunumo – Câmara Municipal.
Kinejo – cinema.
Kuriero – Correio.
Tribunalo – tribunal.
Kunsido Nacia – Assembleia Nacional.
Zorgisto– Zelador.